O globo, n. 31670, 22/04/2020. Especial Coronavírus, p. 4

 

STF abre inquérito sobre protestos

Carolina Brígido

22/04/2020

 

 

Foco é a organização de atos contra a democracia

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou ontem abertura de inquérito para apurar a organização de atos contra a democracia no país. Ele atendeu apedido do procurador-geral da República, Augusto Aras. As manifestações ocorreram durante o domingo em várias cidades. Entre as palavras de ordem, estavao fechamento do Congresso Nacional e do STF, além da intervenção militar e instituição do AI-5, a norma de 1968 que endureceu a ditadura militar no Brasil. Na Corte, outros ministros concordaram coma decisão de que o caso seja formalmente investigado.

O presidente Jair Bolsonaro participou do protesto em Brasíliae fez discurso em frente ao Quartel-General do Exército. O inquérito no STF está sob sigilo e foca na organização dos atos, e não em quem participou deles. Portanto, Bolsonaro não está entre os alvos da apuração. Moraes também autorizou a realização de diligências—que podem ser o depoimento de testemunhas, ou a quebra de sigilos bancários e telefônicos de suspeitos.

No pedido de abertura de inquérito, Aras aponta para a necessidade de ser investigada a organização dos atos. Ele suspeitado envolvimento de deputados federais, que têm direito a serem processados e julgados pelo STF. A PGR também quer saber quem mais participou da organização dos atos, e se houve o financiamento de empresários. O GLOBO apurou que o deputado Eduardo Bolsonaro (PSLSP), assim como o pai, não é um dos alvos do inquérito.

Aras ressaltou que o inquérito investiga fatos, e não pessoas, e disse que numa pandemia é fundamental defender a Constituição.

— Se a Constituição é importante em tempos de normalidade, mais ainda é importante em tempos de excepcionalidade — afirmou o procurador-geral, em entrevista ao canal CNN.

Na decisão, Moraes considerou os fatos “gravíssimos”, pois atentam contra o estado democrático de direito e suas instituições. Segundo o ministro, a Constituição Federal não permite o financiamento e a propagação de ideias contrárias à ordem constitucional e ao estado democrático, nem a realização de manifestações visando o rompimento do estado de direito e a instalação do arbítrio.

A indano despacho, o ministro afirmou que a liberdade de expressão e o pluralismo de ideias são valores estruturantes do sistema democrático. Ele explicou que são inconstitucionais, e não se confundem coma liberdade de expressão, as condutas e manifestações com“a nítida finalidade de controlar ou aniquilara forçado pensamento crítico, indispensável ao regime democrático”. Moraes também considerou ofensa aos princípios constitucionais atos que pregam “a violência, o arbítrio, o desrespeito aos direitos fundamentais”.

“É imprescindível a verificação da existência de organizações e esquemas de financiamento de manifestações contra a democracia e a divulgação em massa de mensagens atentatórias ao regime republicano, bem como as suas formas de gerenciamento, liderança, organização e propagação que visam lesar ou expor a perigo de lesão os direitos fundamentais, a independência dos Poderes instituídos e ao Estado Democrático de Direito, trazendo como consequência o nefasto manto do arbítrio e da ditadura”, afirmou Moraes, em sua decisão.

APOIO NA CORTE

Apesar de Aras não ter consultado nenhum ministro do STF antes de pedira abertura do inquérito, dentro da Corte a atitude foi vista com bons olhos. No domingo, logo depois do discurso de Bolsonaro, os ministros Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello se manifestaram contra o autoritarismo e a favor da democracia. No dia seguinte, o presidente da Corte, Dias Toffoli, classificou como “nefasto” o ataque às instituições e à democracia. Nos bastidores, outros ministros do STF concordaram que os atos representam tentativa de ruptura com o sistema democrático.

No pedido de abertura de inquérito, o procurador-geral afirmou que “qualquer atentado à democracia afronta a Constituição e a Lei de Segurança Nacional”. Segundo a norma, é crime a propaganda pública de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social. Ainda segundo a lei, é crime a incitação à subversão da ordem política ou social, à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou instituições civis.

O inquérito aberto ontem guarda semelhanças com outra investigação instaurada há exato um ano na Corte para apurar ataques contra os ministros e o tribunal. Para começar, o relator: Alexandre de Moraes. Além disso, os dois casos estão sob sigilo etê mo escopo amplo. Ambos investigam fatos, e não pessoas específicas. Assim como o primeiro inquérito, o mais recente tem, entre seus objetivos, apurar ataques ao Supremo.

Por outro lado, os inquéritos guardam algumas diferenças. No ano passado, a primeira investigação foi autorizada com críticas de ministros do STF e do Ministério Público. O caso foi instaurado sem qualquer pedido da PGR, contrariando a praxe do tribunal. Ao contrário, a então procuradora-geral, Raquel Dodge, se manifestou contra a continuidade do inquérito. Ainda assim, Moraes manteve o caso aberto —e assim permanece até hoje.

Na época, o presidente da Corte, Dias Toffoli, determinou a instauração do inquérito por conta própria e nomeou Moraes relator, sem que ele tivesse sido sorteado, descumprindo outra regra do tribunal. O ministro foi escolhido por sua experiência na condução de investigações policiais. Ele foi secretário de Segurança Pública de São Paulo. O inquérito de hoje foi aberto a pedido da PGR. E nesse caso, foi o sorteio quem definiu Moraes como relator.