Valor econômico, v.20, n.4983, 17/04/2020. Política, p. A6

 

Bolsonaro tira Mandetta e pede flexibilização 

Fabio Murakawa 

Matheus Schuch

Andrea Jubé

Murillo Camarotto 

17/04/2020

 

 

Em um movimento aguardado há muitos dias, o presidente Jair Bolsonaro demitiu ontem o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e o substituiu pelo oncologista Nelson Teich. Ao oficializar a troca, Bolsonaro foi alvo de panelaço em diversas cidades do país. O presidente determinou ao novo ministro de ser mais flexível em relação ao isolamento social. Afirmou que o responsável pelo combate à pandemia deve ser sensível ao impacto econômico das medidas.

Bolsonaro e Teich se encontraram no fim da manhã de ontem no Palácio do Planalto. Participaram da reunião os ministros Walter Souza Braga Netto (Casa Civil), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e o secretário especial de Comunicação Social, Fabio Wajngarten. Teich entrou na sala do presidente acompanhado de representantes da Associação Médica Brasileira (AMB), em um sinal de apoio da categoria ao seu nome.

Ele não se comprometeu a recomendar a flexibilização abrupta das medidas de isolamento ou o isolamento vertical. Convenceu Bolsonaro de que, se conseguir ampliar a testagem da população, será possível flexibilizar as restrições.

Bolsonaro também cobrou do novo ministro um diagnóstico mais preciso da situação da pandemia no Brasil. Auxiliares relatam que o presidente se queixava da falta de dados sobre leitos de CTI, número de testes para diagnósticos da covid-19, entre outros.

Teich foi anunciado no fim da tarde, em um pronunciamento conjunto com Bolsonaro no Salão Oeste do Palácio do Planalto.

As falas do novo ministro refletiram em boa parte a conversa reservada no gabinete presidencial. "Existe um alinhamento completo aqui entre mim e o presidente e todo o grupo do ministério", disse. "O que a gente está fazendo aqui hoje é trabalhar para que a sociedade retorne, de forma cada vez mais rápida, uma vida normal."

Ele também procurou demonstrara que é preciso conciliar saúde e economia. "Um dos problemas é cuidar da saúde, mas tem o desenvolvimento econômico, a educação, outras coisas. Quanto mais desenvolvimento econômico, mais dinheiro para gastar com educação e a saúde", frisou.

Teich defendeu também mais informações sobre a doença respiratória causada pelo novo coronavírus e de seus efeitos para a tomada de decisões. E apostou na testagem maciça da população para tornar mais precisa análise do quadro da pandemia no país.

"A gente tem que entender mais a doença, para que possamos sair dessa política de isolamento", pontuou. "Para conhecer a doença, é fundamental que tenhamos um programa de testes, um programa que vai ter que envolver SUS, saúde suplementar."

Bolsonaro, por sua vez, afirmou que desde o início da crise sempre defendeu "a vida" e a preservação do emprego. "É como um paciente que tem duas doenças. A gente não pode abandonar uma e tratar exclusivamente outra."

Ele disse ter conversado com Teich para que "entendesse a situação como um todo, sem abandonar o principal interesse: a manutenção da vida". Mas pontuou que, "junto como o vírus veio uma verdadeira máquina de moer empregos". O presidente afirmou ainda que "as pessoas mais humildes começaram a sentir primeiro o problema", e defendeu a abertura gradual da economia.

"O governo não tem como manter esse auxílio emergencial ou outras ações por muito tempo. Já se gastou R$ 600 bilhões, e podemos chegar a R$ 1 trilhão."

Bolsonaro também fez uma crítica a governadores como João Doria, de São Paulo, que ameaçaram com prisão quem descumprir o isolamento social. "Quem tem poder de decretar estado de defesa ou de sítio, depois de uma decisão, obviamente, do Parlamento brasileiro, é o presidente da República, e não prefeito ou governador", afirmou. "O excesso não levará à solução do problema. Muito pelo contrário, se agravará."

O novo ministro atuou na equipe de transição de Bolsonaro. Primeiro, como uma voz especializada nos diversos grupos de trabalho comandados pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Depois, como integrante do núcleo conduzido pelo general Augusto Heleno, hoje ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que tratava de temas de fora da agenda econômica".

Segundo Adriano Massuda, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) e pesquisador visitante no Departamento de Saúde Global e Populações da Escola de Saúde Pública de Harvard, o oncologista "tem uma boa formação médica, trabalhou com inovação e avaliação de novas tecnologias em saúde, atua no campo da ciência". Ele alertou, contudo, que Teich é inexperiente não tem experiência em gestão pública do SUS, o que de fato pode se um ponto dificultador", disse Massuda. Para o professor da FGV, que afirma ter poucas informações além dessas, o novo ministro não lhe parece, porém, alguém desorientado. "Ele tem um norte científico", disse. (colaborou Leila Souza Lima, de São Paulo)

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'A luta é longa e o pior não passou'

Cristiane Agostine

André Guilherme Vieira 

Murillo Camarotto

Rafael Bittencourt

17/04/2020

 

 

Nas últimas horas em que ficou no comando do Ministério da Saúde, o médico Luiz Henrique Mandetta aproveitou os holofotes para deixar alguns recados para seu sucessor e para o presidente Jair Bolsonaro. O primeiro: a luta contra o novo coronavírus é longa, o pior não passou, o país enfrentará ainda um período "muito duro" e maio reserva uma explosão de casos e mortes por covid-19. O segundo: a resposta para o enfrentamento da doença está única e exclusivamente na ciência. Não há remédio mágico para curar os doentes e nenhuma medida isolada resolverá totalmente o problema. E terceiro: o país enfrentará grave crise econômica, com o aumento da pobreza em decorrência das medidas de isolamento social. A quarentena, no entanto, ajudou o país a ganhar tempo para estruturar o sistema de saúde e deve ser mantida para evitar danos maiores, segundo o agora ex-ministro.

Mandetta deixou claro que havia um "descompasso" entre o que ele defende e o que Bolsonaro queria, e disse que não pôde transmitir à sociedade a mensagem que o presidente queria - como o fim do isolamento social e a defesa do uso da cloroquina e da hidroxicloroquina. No entanto, ressaltou que não chegou ao cargo "por obra do Espírito Santo", mas sim por uma escolha do próprio presidente. "Mas isso aqui [ministério] não é uma coisa que só tem esse caminho. Pode ser que a pessoa sente aqui e tenha uma sacada. Acho que o que a gente está fazendo é com base nas informações que a gente tem. A gente não tem essa genialidade pra falar 'faça-se a luz' e a luz se fez", ironizou Mandetta, substituído ontem pelo oncologista e empresário Nelson Teich.

Pela manhã, poucas horas antes de ser chamado por Bolsonaro para ser demitido, Mandetta defendeu suas ideias em um debate virtual promovido pelo Fórum Inovação Saúde (FIS) e criticou os remédios milagrosos que têm sido defendido para a cura da covid-19, sem base científica.

"A gente vê estudo in vitro, sem aplicabilidade imediata, mas se prestou muito a um discurso político", disse, em referência indireta ao ministro Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia), que declarou que uma pesquisa de cientistas brasileiros apontou eficácia de dois remédios já comercializados contra o novo coronavírus. Mandetta reclamou do debate político e não técnico sobre o uso de medicamentos, inclusive por médicos.

O ex-ministro defendeu a testagem em massa da população e procurou divulgar que foi sua gestão a responsável pela compra de cerca de 30 milhões de testes da covid-19, e pela parceria com a Universidade Federal de Pelotas para identificar quem já foi contaminado pelo novo coronavírus. Mandetta disse que quando metade da população for contaminada e quando o governo tiver um controle mais claro sobre os casos do coronavírus, outras medidas poderão ser tomadas, como a flexibilização da quarentena.

Neste momento, no entanto, é preciso manter as medidas de distanciamento social, reforçou o ex-ministro. "Agora precisa tomar a decisão se vai continuar com esse modelo de esforço [afastamento social] ou se deve ser relativizado em torno das variantes. Se vai relativizar num mercado que não tem teste, que não tem respirador nem máscara", ponderou, apontando a falta de estrutura do sistema de saúde no país para atender a população.

Com a melhor avaliação entre os integrantes do governo Bolsonaro, Mandetta deu um recado a quem pauta suas ações pelas redes sociais, em crítica indireta ao presidente. "Acho que muita gente fica doente porque quer viver os dois mundos, o real e o virtual. Como a crise é muito dura, eu optei pelo mundo real, eu deixei o mundo social de lado", afirmou. E voltou a criticar a politização de temas que deveriam ser tratados de forma técnica, como o combate à covid-19. "A política do você é ou não, aceita ou não, abusa muito da ruptura. Você é obrigado a ter lado, e se você não está ao meu lado, passa a ser um objeto de destruição".

Mesmo sob críticas do presidente nos últimos dias, o ex-ministro procurou mostrar que estava totalmente dedicado à pasta, trabalhando de "18 a 20 horas por dia há mais de 60, 80 dias, sem sábado, domingo ou feriado". Mandetta disse que pretende ajudar seu sucessor, afirmou que não tem planos para o futuro e, por fim, evitou criticar o presidente. "Bolsonaro é um brasileiro muito bem intencionado."

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Atuação apagada foi substituída por alta aprovação 

Cristiane Agostine

Fernando Exman

17/04/2020

 

 

O médico ortopedista Luiz Henrique Mandetta deixa o comando do Ministério da Saúde como o ministro mais bem avaliado da gestão Jair Bolsonaro e com a menor rejeição entre os integrantes do governo. Com uma atuação discreta até a pandemia do coronavírus, marcada pelo distanciamento em relação a polêmicas e disputas ideológicas que marcam o governo, Mandetta é avaliado de forma positiva por 64% da população e sua demissão foi reprovada por sete em cada dez brasileiros, segundo pesquisa da consultoria Atlas Político divulgada um dia antes de sua exoneração.

Em seu primeiro ano, concentrou atenção na reorganização da pasta, no fortalecimento da atenção básica, na formulação de novas frentes de pesquisa e na construção da equipe que o acompanhou até o fim da sua gestão, formada por técnicos vindos de vários Estados. Em 2020, teria, entre outras prioridades, a missão de aumentar a cobertura vacinal e combater o surto de sarampo. O plano, no entanto, teve que ser deixado de lado devido ao avanço da covid-19.

A defesa do isolamento social, uma das bandeiras do ministro durante a crise do novo coronavírus, e a ponderação sobre o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina são elogiadas por especialistas. A atuação do ministro no início da crise, no entanto, tem sido contestada. Há o entendimento que o ministério poderia ter aproveitado melhor a experiência do que estava acontecendo na China e nos países europeus, em fevereiro, para articular com Estados, municípios, e a rede privada de saúde a expansão da oferta de leitos de UTI, além da compra de respiradores e de equipamentos de proteção individual. A principal queixa de secretários estaduais e municipais de saúde é a de que não recebem recursos nem equipamentos em número suficiente do ministério.

Ao longo do governo, Mandetta buscou conciliar sua experiência política, como ex-secretário estadual e ex-deputado eleito pelo DEM, com as questões técnicas da pasta. Ele vem de uma família de políticos, com vereadores, deputados estaduais, federais, prefeitos e senador. Seu pai, Hélio, foi vice-prefeito de Campo Grande.

Mandetta disputou uma cadeira na Câmara para fazer oposição ao PT e foi um dos principais críticos do programa Mais Médicos. Dizia que a gestão Dilma Rousseff estava agindo de forma ideológica, para financiar o governo cubano.

O programa foi desarticulado quando Bolsonaro assumiu a Presidência e Mandetta criou o programa Médicos pelo Brasil, com novos critérios para distribuição de vagas entre os municípios e regras para seleção dos profissionais. A medida provisória que estabelecia o modelo quase caducou, mas Mandetta articulou pessoalmente com líderes para garantir sua aprovação.

Uma de suas principais ações foi alterar o modelo de financiamento federal de atenção primária à saúde no fim de 2019, atingindo o atendimento de equipes de saúde da família e de unidades básicas de saúde. Alvo de críticas, a medida determina que o repasse de recursos do governo federal seja feito não com base na população estimada do município, mas sim levando em conta o número de pacientes cadastrados nas unidades de saúde e o desempenho delas a partir de indicadores. Na prática, apontam os críticos, diminuem os recursos para as unidades de saúde. O ex-ministro argumentava que isso não ocorreria de imediato.

Outras iniciativas de Mandetta também buscavam usar o poder de compra do Estado para reduzir custos e renegociar contratos. O ex-ministro dizia, por exemplo, que fechara um acordo com a equipe econômica: não pediria mais dinheiro, enquanto não fosse alvo de cortes orçamentários.

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Desgastado, presidente intimida governadores 

Maria Cristina Fernandes

17/04/2020

 

 

O presidente Jair Bolsonaro trocou o ministro da Saúde sem arredar um milímetro de suas convicções sobre o combate à pandemia do coronavírus. E ainda valeu-se do discurso de apresentação do novo ministro para subir o tom contra os governadores e o Congresso. Se o pronunciamento visava a tranquilizar a população sobre a condução de um governo desfalcado do principal gerente do combate à pandemia, a menção ao estado de sítio, ainda que para dizer que o instrumento não seria usado, teve efeito inverso.

Ao citar o "clima de terror que se instalou na sociedade", Bolsonaro tentou relacioná-lo ao desemprego provocado pelas medidas restritivas dos governos estaduais e não ao medo da morte pela doença. Subiu o tom contra os governadores, com quem trava uma disputa no Congresso no projeto de compensação pelas perdas na arrecadação: "Se governadores e prefeitos exageraram, não coloquem essa conta nas costas do povo brasileiro". São Paulo e Rio, de João Doria e Wilson Witzel, são os Estados que mais perderam receita.

Acusou-os de cercear direitos individuais, quando "quem tem direito a estado de defesa ou estado de sítio é o presidente da República". Não defendeu o uso de nenhum dos dois instrumentos, mas sua menção no discurso não é fortuita. Tanto reitera sua autoridade num momento em que foi derrotado na Câmara pelo projeto de ajuda aos Estados e no Supremo pela tentativa de afrouxar o isolamento social, quanto tenta colocar governadores e prefeitos no mesmo balaio de seu voluntarismo.

Ao demitir o ministro mais popular de seu governo em meio à elevação da curva de óbitos da covid-19, Bolsonaro fez aposta arriscada. Os panelaços, durante o discurso, anteciparam prejuízos que já busca socializar. Se ele perde com a demissão de Henrique Mandetta, governadores e prefeitos, alheios ao fato de que "junto com o vírus veio uma máquina de moer empregos", não podem sair ganhando: "O remédio não pode ser mais danoso que a doença".

O novo ministro, ao seu lado, demonstrou que não montará em cavalo de batalha por suas convicções. A julgar pelo artigo que escreveu, no início de abril sobre a covid-19, Nelson Teich pouco mudaria na gestão do ministério. "Felizmente, apesar de todos os problemas, a condução até o momento foi perfeita", escreveu. No texto, defendeu a opção pelo distanciamento social: "É uma estratégia que permite ganhar tempo para entender melhor a doença e implementar medidas que permitam a retomada econômica do país." No discurso em que se apresentou ao país limitou-se a dizer que não haverá mudanças bruscas: "Saúde e economia não são excludentes."

A comparação de Bolsonaro entre os direitos individuais pretendidas pelos governadores e os danos que um estado de sítio poderia provocar deve ter surtido efeito sobre Teich. O novo ministro enfatizou a necessidade de aprimorar a coleta de dados e informações sobre a doença, mas não retomou a proposta do artigo ("estratégias de rastreamento e monitorização, algo que poderia ser rapidamente feito com o auxílio das operadoras de telefonia celular"). Ao contrário de seu antecessor, que sempre alertou contra a impossibilidade de se fazer isso num país de 200 milhões de habitantes, Teich quer testes em massa. O novo ministro promete agir sob bases "técnicas e científicas". Hermético, não se fará entender facilmente pela população, o que, pelo histórico de comunicador de Mandetta, deve ter contado, para o presidente, a favor de sua nomeação.

Dono de uma empresa de gestão tecnológica de saúde, o novo ministro surpreenderá se aparecer com o jaleco do SUS. O Sistema Único de Saúde teve uma breve menção em seu discurso de ontem, quando Teich disse que o programa de testes o envolveria, bem como a saúde suplementar e as empresas. Não deixa de ser uma evolução. No artigo do início de abril, entre 1.991 palavras, não se encontra nenhuma menção ao sistema público que tem segurado o tranco da pandemia no país.