Valor econômico, v.20, n.4982, 16/04/2020. Artigos, p. C10

 

Fatores comportamentais na saída da quarentena

Aquiles Mosca

16/04/2020

 

 

Até que tenhamos uma vacina contra a covid-19, a contenção do contágio fica a cargo da obediência a medidas de distanciamento social. Mas como as pessoas se portarão conforme a quarentena continue e, em algum momento, as restrições comecem a ser reduzidas?

Se por um lado o confinamento é essencial ao controle do contágio, por outro as estratégias de saída serão importantes para impedir a volta do surto e permitir o início da retomada da atividade econômica. Dessa forma, compreender o comportamento humano em situações em que há restrições à liberdade deveria tornar-se um aspecto central do debate econômico e político.

Um campo de pesquisa que pode jogar luz sobre esses fatores é denominado em ciências comportamentais de teoria da reatância (Brehm & Brehm, 2013). Tais estudos dedicam-se a entender como reagimos frente a ameaças, reais ou percebidas, relacionadas a nossas liberdades. Eles demonstram as consequências comportamentais observadas quando há perda de controle oriunda de restrição a liberdades. Adicionalmente, demonstram que em condições em que nos é negado algo que desejamos, nos tornamos mais sensíveis a indícios de desigualdades. No cenário atual de quarentena e confinamento, nos referimos à desigualdade na possibilidade de deslocamento, de socialização e acesso a oportunidades.

Em outras palavras, se percebemos que outras pessoas, por alguma razão, têm acesso a algo que desejamos, mas que nos é negado, tendemos a apresentar comportamentos e reações adversas. Quão severa será a reação depende da extensão da perda de liberdade que foi, ou nesse caso está sendo, vivenciada.

Ou seja, a severidade da reação de quem está sofrendo uma restrição (ficar em casa) por longos períodos de tempo depende da magnitude da perda percebida, que por sua vez está associada à percepção de tratamento desigual conforme algumas pessoas e setores da economia comecem a ter suas restrições relaxadas.

Para administrar e conduzir situações como essas, cientistas comportamentais ressaltam a importância da narrativa que se forma ao redor dos eventos.

O papel da narrativa é dar estrutura e sentido, tanto ao que está sendo vivenciado como ao que está por vir (Wagner-Egger, 2013). Elas permitem aos indivíduos recuperar a percepção de previsibilidade, resultando em sensação de controle. A razão pela qual narrativas bem construídas e coerentes com a realidade são tão importantes está relacionada a sua capacidade de ordenar os eventos, estruturá-los e devolver sentido até mesmo a uma situação caótica.

Tomemos a crise financeira global de 2008 e possíveis analogias com a atual pandemia. A crise de 2008 resultou em alta sensibilidade a alguns temas que passaram a dominar o debate público, principalmente nas economias desenvolvidas que foram a origem e epicentro dos eventos. Temas como a quem atribuir responsabilidade, a quem punir, onde jogar o peso do ajuste necessário à recuperação, dentre outros, configuraram a narrativa que fez parte do cenário que possibilitou assimilar a crise e desenhar a recuperação já no ano seguinte.

A narrativa para a atual crise da covid-19 ainda está em fase de definição, com os atores se posicionando no palco. Algo similar ao descrito para a crise financeira de 2008 deve configurar-se em breve. Haverá em cada nação, e no mundo como um todo, a definição de heróis, vilões e vítimas, que são necessários para dar sentido ao que aconteceu. Essa configuração dará o tom das reações, dos comportamentos e das decisões que impactarão o mundo político e econômico nos próximos anos.