O Estado de São Paulo, n.46190, 04/04/2020. Notas e Informações, p.A3

 

Sabotagem

04/04/2020

 

 

Em meio a uma das maiores crises sanitárias da história, o presidente Jair Bolsonaro decidiu desmoralizar publicamente seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, principal autoridade federal responsável pela organização dos esforços para combater a epidemia de covid-19. E o fez porque sua única preocupação é consigo mesmo e com a manutenção de seu poder e de seu capital eleitoral, que julga ameaçado por todos os que não o adulam, como é o caso do ministro Mandetta.

Para os que ainda julgavam possível que Bolsonaro, ante a gravidade da crise, enfim tomasse consciência de seu papel e passasse a atuar como chefe de Estado, e não como chefe de bando, deve ter ficado claro de vez que o ex-deputado do baixo clero jamais será o estadista de que o País precisa. Bolsonaro, definitivamente, não é reciclável.

Em entrevista à Rádio Jovem Pan, Bolsonaro disse que o ministro Mandetta “em algum momento extrapolou”, que “tem que ouvir um pouco mais o presidente da República” e que “está faltando humildade” ao ministro da Saúde. De fato, e felizmente, o ministro da Saúde e sua equipe têm rejeitado os devaneios do presidente a respeito da possibilidade de levantar imediatamente as medidas de isolamento social para enfrentar a epidemia. Se dependesse de Bolsonaro, os brasileiros estariam todos amontoados nas ruas e nos escritórios a trabalhar como se não houvesse um vírus letal a se espalhar em espantosa velocidade e a provocar o caos no sistema de saúde.

O comportamento de Bolsonaro ajuda a desarticular os esforços governamentais para lidar com uma crise especialmente desafiadora, que demanda coordenação e união de forças. “Toda vez que o presidente vem a público para criticar o ministro ( da Saúde), mais atrapalha do que ajuda. Esse conflito que ele cria agora com o ministro não faz nenhum sentido”, disse o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

O problema é que faz sentido até demais. Até agora, acreditava-se que o governo estivesse acéfalo, dada a notória incapacidade de Bolsonaro de exercer a Presidência. Antes fosse assim, pois a acefalia, se não ajudasse, ao menos não atrapalharia. O governo tem sim um cérebro – tomado de delírios paranoicos. “O presidente sou eu, pô”, disse recentemente Bolsonaro, que por uma estranha razão precisa reafirmar o que, lamentavelmente, todos já sabem. Para Bolsonaro e seus mais diletos sabujos, a epidemia é apenas um pretexto usado por seus inimigos – todos comunistas, é claro – para minar seu poder.

Não à toa, o presidente volta e meia cita a ameaça de impeachment, como se estivesse prestes a ocorrer. “Gente poderosa em Brasília espera um tropeção meu, tá?”, disse Bolsonaro, que fica muito à vontade no papel de vítima do “sistema”. O presidente informou que tem pronto um decreto para mandar reabrir o comércio – numa “canetada”, segundo suas palavras –, mesmo sabendo que o Congresso e o Judiciário irão barrá-lo. É esse tipo de confronto que Bolsonaro persegue. “Mas eu tenho o povo do nosso lado”, disse o presidente, sugerindo que as instituições que limitam seu poder são contrárias ao “povo”.

Mas o povo, sem aspas, mesmo tendo que carregar imenso fardo social e econômico em razão da epidemia, não está do lado de Bolsonaro, como mostram pesquisas divulgadas ontem. A atuação do presidente no enfrentamento da epidemia foi considerada “ruim” ou “péssima” por 44% dos entrevistados em levantamento da XP/Ipespe e por 39% segundo o Datafolha. Já a atuação do ministro Mandetta foi aprovada por 68% na pesquisa XP/Ipespe e por 76% na do Datafolha. Já a aprovação aos governadores – tratados como inimigos por Bolsonaro – subiu de 26% em março para 44% em abril, segundo a XP/Ipespe. No Datafolha, a aprovação é de 58%.

Está claro que, para grande parte dos brasileiros, o presidente é um estorvo a ser ignorado, como, aliás, determinou o ministro Mandetta a seus auxiliares, segundo apurou o Estado. Questionado sobre o que pretende fazer diante dos ataques do presidente, o ministro respondeu: “Vamos trabalhar. Lavoro, lavoro, lavoro”.