Título: Confusão fundiária é anterior a Brasília
Autor: Tahan, Lilian; Campos, Ana Maria
Fonte: Correio Braziliense, 11/12/2012, Cidades, p. 21

Documentos obtidos pelo Correio revelam a dificuldade do governo JK em conduzir as desapropriações de terras no quadrilátero do DF. Além de frequentes erros de grafia, as delimitações levavam em conta acidentes geográficos, vegetações e até cupinzeiros

Dois de outubro de 1956. Às 11h40, o presidente da República, Juscelino Kubitschek, empossado oito meses antes, pousa a bordo do avião presidencial em uma pista improvisada na região que três anos depois viraria a nova capital federal. O objetivo da primeira viagem ao quadrilátero era ver com os próprios olhos o progresso nas desapropriações das fazendas goianas. A compra dessas glebas tornou possível a criação de Brasília, porque dela se fez o solo candango. Mas também é a origem de todos os litígios fundiários do Distrito Federal que persiste até hoje.

Quase seis décadas após as primeiras negociações, ainda há volumosos processos judiciais reclamando solução para conflitos sobre a legítima propriedade dessas áreas rurais, que eram imensos descampados, mas onde atualmente residem 2,8 milhões de pessoas. Para se ter uma noção da complexidade dos problemas, a Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap), que detém as terras públicas do Distrito Federal, é parte em 3,5 mil ações sobre questões fundiárias que tramitam na Justiça. A primeira transação imobiliária que envolve o endereço do Palácio do Planalto, da Alvorada, o Congresso Nacional, todo o Plano Piloto e o coração de Brasília foi negociada com Jorge Peles, um comerciante que tinha um documento precário de direito sobre a terra: um compromisso de compra e venda lavrado no 1º Ofício de Luziânia. Começa aqui o entrelaçamento de personagens centrais na história das terras candangas. Peles é pai de Weslian Roriz, sogro de Joaquim Domingos Roriz, governador do DF por quatro mandatos e que, para o bem ou para o mal, fez das questões fundiárias o seu legado.

Precariedade

O Correio teve acesso a um documento histórico intitulado Primórdios de Brasília, no qual o homem destacado para comandar as desapropriações em Goiás, o médico e pecuarista Altamiro de Moura Pacheco, relata em 95 páginas os detalhes das transações que coordenou para a formação do DF. Ele tinha uma procuração do governador de Goiás, José Ludovico, dando-lhe amplos poderes para negociar e comprar as fazendas.

Eram 108 propriedades rurais (leia mapa) pertencentes a 154 fazendeiros do território onde seria fincada a cidade idealizada por Juscelino. O relatório dá notícia de parte das dificuldades das desapropriações, como documentos precários, e a existência de 3.829 alqueires geométricos de terras devolutas, ou seja, aquelas áreas em que os donos não foram localizados. Para entender a dificuldade do trabalho, é preciso levar em conta que as terras no meio do Planalto Central valiam pouco na época, muita gente não registrava seus bens em cartórios e, mesmo quando a titularidade era oficializada, os termos eram genéricos, muitas vezes sem informações precisas, dando conta apenas dos nomes, sem endereços ou números de identificação, com erros grosseiros de grafia. As inscrições das propriedades também eram imprecisas, com coordenadas marcadas a partir da casa de vizinhos, de cupinzeiros, nascentes de córregos, morros, solos acidentados, enfim, referências que se perdiam com o tempo.

Na matrícula da Fazenda Papuda, por exemplo, onde hoje é o bairro Jardim Botânico, a descrição começava assim: “Do fundo dos quintais das casas da Fazenda Papuda, pela estrada que vem para esta cidade, à cabeceira do açude mais próximo às ditas casas…” Já a Fazenda Buriti ou Tição, no sudoeste do DF, é localizada “pelo norte com terras de Pedro Cardoso Romeiro; pelo poente do veio d’agua acima do Rio Descoberto até a Capella de Santo Antônio…”

Próximas a Buriti, estão Giboia e Lage, ambas com erros de grafia nos documentos, o que dificulta a identificação. A Fazenda Taboquinha inicia “na cabeceira da vertente do meio, onde se encontra cravado um mourão de concreto…”; e a Santa Bárbara, hoje região de Santa Maria, “começa no marco que está cravado no eixo da estrada Santa Angela, com as terras da mesma fazenda.”

Esses são apenas alguns exemplos da complexidade de localização das áreas. Além disso, havia contratos de gaveta e os espólios eram divididos entre famílias numerosas, com muitos herdeiros. Assim, na hora de comprar a terra, a Comissão de Desapropriação não teve condições em tempo recorde dado por JK para a construção de Brasília de localizar todos os que tinham direito de propriedade.

Para complicar ainda mais a situação, a valorização das terras atraiu criminosos, que se aproveitaram das brechas para falsificar documentos de propriedade, inventar herdeiros e deslocar títulos de propriedade. “Um dos grandes problemas é que as desapropriações ocorreram e muitas transações não foram averbadas nos cartórios de origem”, explica a procuradora-geral de Justiça do DF, Eunice Amorim Carvalhido, que atuou em vários processos relacionados a terras nas promotorias de Meio Ambiente e Defesa do Patrimônio Público. A duplicidade de informações foi o gancho para a atuação de muitos grileiros.

Um dos condomínios mais valorizados do DF, o Villages Alvorada, ao lado da Ermida Dom Bosco, de frente para o Palácio da Alvorada, é um exemplo. Existe um conflito sobre se a terra é particular ou pública. Uma escritura de um cartório de Goiás aponta um proprietário privado. Mas essa área está registrada no DF como sendo de propriedade da Terracap. O processo está na Justiça e os moradores aguardam o deslinde para a regularização do condomínio.

Autônoma

A Novacap foi criada pela Lei nº 2.874, de 1956, que também delimitou o território do DF. A empresa se tornou dona de todas as terras desapropriadas de Goiás e da União. Em 1973, um departamento da Novacap, especializado na realização dos loteamentos e na venda dos terrenos, transformou-se em uma empresa autônoma, a Terracap.

Unidade de medida

Antigamente, vários estados adotavam uma medida própria, como o alqueire paulista, o mineiro, o baiano. O geométrico é o goiano, que equivale a 48,4 mil metros quadrados ou 4,84 hectares.

Prezado amigo Altamiro Moura Pacheco,

“Venho querendo escrever-lhe há muito tempo. Hoje, porém, resolvi e esta carta lhe vai para significar-lhe o quanto lhe devo pela dedicação e pelo interesse devotados à construção de Brasília. A você tocou a parte mais trabalhosa, aquela que não se vê, que se desenrola no silêncio dos gabinetes: a desapropriação de terras, sem o que Brasília não se faria jamais. E você não empregou toda sua imensa capacidade com os objetivos fiduciários, fê-lo por idealismo, porque foi daqueles que cedo compreenderam o papel histórico, geopolítico da nossa capital. Brasília triunfou porque teve homens de sua têmpera, de seu arrojo, desses para quem o empreendimento se situava como resgate da velha dívida nacional. Permita dizer-lhe que minha admiração pelo seu trabalho não se dimensiona em nenhuma expressão escrita: ela cresce à medida em que Brasília se impõe como a mais bela realização de nosso tempo.”

Um afetuoso abraço, Juscelino Kubitschek

Carta de Juscelino Kubitschek a Altamiro Moura Pacheco, em 10 de dezembro de 1974