Título: Os primórdios do clã Roriz
Autor: Tahan, Lilian; Campos, Ana Maria
Fonte: Correio Braziliense, 11/12/2012, Cidades, p. 21

A história sobre a compra das terras do sogro do ex-governador do DF, então localizadas no Plano Piloto, respinga em divergências de valores, indenizações e supostas doações

A desapropriação da Fazenda de Jorge Peles que deu origem à área mais central de Brasília é uma história que virou lenda na família de Joaquim Roriz. Os documentos da negociação indicam que o comerciante e o sócio venderam para o estado de Goiás uma parte significativa da Fazenda Bananal. Só que eles nunca passaram para seus nomes as terras que compraram do fazendeiro Hélio Rodrigues Queiroz, que nos documentos aparece como o verdadeiro proprietário. Essa cultura persiste ainda hoje, quando alguns negociantes como Peles e o sócio dele não registram a titularidade no cartório de imóveis e, com isso, deixam de pagar o imposto de transferência.

A compra das terras por parte de Peles, uma gleba de 4,3 mil alqueires geométricos, ocorreu em 16 de abril de 1955, oito meses antes da desapropriação, em 30 de dezembro do mesmo ano. Esse foi o primeiro movimento de valorização de terras até então esquecidas no interior do país, mas que hoje se comparam ao valor do metro quadrado das mais badaladas cidades do mundo.

A trajetória de Peles é festejada entre os seus. Em 1988, quando o então presidente José Sarney nomeou Joaquim Roriz governador do Distrito Federal, Jorge Peles fez uma troça: “Agora, pela primeira vez, terei um capataz para minhas fazendas”. O episódio foi testemunhado pelo atual vice-governador do DF, Tadeu Filippelli, que por 30 anos foi casado com Célia Ervilha, neta do pioneiro cujas terras deram origem a Brasília. Na família de poderosos, a história que se repete é a de que Peles nunca foi indenizado como deveria por ter vendido as terras ao Governo de Goiás. Conta-se que na transação ele recebeu um cheque sem fundo.

O relatório de Altamiro Pacheco mostra outra versão. Ele diz que pagou para a propriedade de Peles a quantia de 12 milhões de cruzeiros velhos (cerca de R$ 3,5 milhões), ou 12 mil contos de réis do montante de 120 milhões (aproximadamente R$ 35 milhões) autorizados pelo Congresso para as desapropriações — ou seja, 10% de toda a fortuna que comprou as fazendas para instalar a capital. A escritura da desapropriação da Fazenda Bananal registrada no Cartório do 3º Ofício de Goiânia é outro documento que detalha a operação imobiliária.

Segundo a papelada, Jorge Peles e seu sócio, acompanhados por suas mulheres, concordaram com os termos da negociação do Governo de Goiás. Assinaram a documentação onde consta que receberam CR$ 3.870.000,00 (cerca de R$ 600 mil). O valor corresponde a três vezes o que Peles e o sócio pagaram pelas terras. O primeiro grande negócio imobiliário na capital. Embora haja uma divergência de valores, segundo o documento relacionado à desapropriação da terra, os sócios receberam o pagamento em moeda corrente, contaram o dinheiro e se deram por satisfeitos. Entre os descendentes, no entanto, a versão que prevalece é a do cheque sem fundo. Quem conviveu com Peles diz que ele morreu com apenas um apartamento na 103 Sul, aposentado pela Fundação Zoobotânica do Distrito Federal. “Foi um homem simples, gentil, que despertava a admiração de todos os que o conheciam, muito apegado aos filhos”, descreve o vice-governador Tadeu Filippelli, autor do título de cidadão honorário post mortem ao familiar.

Latifundiário

Pai de três bisnetos de Jorge Peles, Filippelli ajudou a romancear a história. Para justificar a homenagem concedida ao sogro de Roriz, quando o agora vice-governador era distrital, em 1998, ele diz no Projeto de Decreto Legislativo que Peles doou à União 80% das terras que integravam a sua fazenda. Os documentos da desapropriação, no entanto, registram que não houve doação. Houve venda das terras.

Roriz, genro de Peles, também teve uma relação muito estreita com as terras da capital. Nasceu em 1936, no município goiano de Luziânia, um dos três que originaram o DF. Lá, o pai do ex-governador, Lucena Roriz, era um latifundiário que deu origem à Fazenda Palma. Quando jovem, Joaquim Roriz costumava andar a cavalo pelas fazendas onde mais tarde transitaria o poder do qual ele fez parte por duas décadas. Foi justamente nos governos dele que houve uma explosão de ocupações irregulares. Parte dos conflitos nasceu da política de fatiamento e distribuição de lotes, da falta de fiscalização na ocupação de áreas públicas e nos conflitos que surgiram pelo uso de documentos precários do direito de propriedade a terras cujas desapropriações não foram concluídas.

“Currais tôscos”

Um trecho da escritura pública de desapropriação da Fazenda Bananal, de propriedade de Peles, que deu origem ao Plano Piloto descreve “uma gleba de terras no mesmo município de Planaltina, situada na Fazenda do Bananal ou Larga do Bananal, composta de campos de criar, matos de cultura e contendo ranchos de palha, rêgo d’água, currais tôscos, pastos fechados, etc.”