Título: Do pó aos bilhões
Autor: Tahan, Lilian; Campos, Ana Maria
Fonte: Correio Braziliense, 11/12/2012, Cidades, p. 21

Série de reportagens revela como se deu a ocupação do solo, o mais valioso bem da cinquentenária capital do país. O DF tem hoje um terço de seu território em situação irregular, fruto de uma história de grilagem e descaso, onde políticos e empresários fizeram fortuna

No começo era tudo cerrado. Do cerrado se fez pó. Da terra vermelha, brotou uma cidade, a esperança, o poder e a riqueza. A capacidade de trabalho e a organização fizeram do sonho a casa de alvenaria dos candangos no Planalto Central. Mas como os redemoinhos de vento que remexiam a terra nos idos de 1960, a desorganização se imiscuiu aos valores da criação e também deixou sua marca. Se em três anos e oito meses os pioneiros foram capazes de erguer a capital da República, em cinco décadas o Distrito Federal tornou-se símbolo da desordem fundiária, com sequelas tão ou mais impregnadas que a história de quatro séculos de grandes metrópoles brasileiras foi capaz de produzir.

Ask the dust é um clássico da literatura beat da década de 1930. Traduzido para o português, significa Pergunte ao pó. O título cabe perfeitamente em uma reflexão sobre Brasília e suas particularidades. No DF, o solo é resposta para tudo. Perguntar à terra é certeza de descobrir o passado de idealizações, o presente de conflitos e o futuro de incertezas. Para entender no que se tornou a cidade criada por Juscelino Kubitschek, planejada por Lucio Costa e transformada em monumento por Oscar Niemeyer, é preciso voltar no tempo. E questionar as reviravoltas da terra, exumar histórias, revisitar personagens, investigar mapas desbotados, agitar documentos amarelados, vasculhar cartórios.

A história sobre as terras do DF começa em 1822, ainda nos primeiros anos do Império, quando o estadista José Bonifácio de Andrada e Silva propôs interiorizar a capital do Brasil e sugeriu os nomes de Petrópole, em homenagem ao imperador Pedro I, ou Brasília. Em 1892, foi constituída a comissão Cruls, que veio desbravar a área onde quase sete décadas depois seria inaugurada a nova capital. Começa em 1955, com as desapropriações das fazendas goianas que integram o polígono do DF, a confusão que responde por sete cidades inteiras sem escrituras, 513 loteamentos clandestinos, além da destruição de áreas de preservação ambiental tomadas pela ocupação ilegal.

A decisão de transformar 5.802km² de glebas pertencentes a fazendeiros dos municípios de Luziânia, Planaltina e Formosa no quadrilátero da capital criou litígios que resistem há quase 60 anos. Essa é a moldura que enquadra um cenário matematicamente absurdo para os dias de hoje. Na capital da República, que deveria ser uma referência nacional, um terço da população mora na ilegalidade. “Impressionante uma cidade planejada e com só 52 anos ter uma proporção tão grande de suas terras em situação irregular, enquanto outros municípios, como o Rio de Janeiro, com quatro séculos de existência, não têm uma situação tão grave”, diz o presidente da Companhia de Planejamento do DF (Codeplan), Júlio Miragaya.

Fortunas em hectares

O Correio inicia hoje uma série de reportagens sobre a ocupação do Distrito Federal, seus desdobramentos, dificuldades e tentativas de deslindes. Na capital do país, a terra é o bem mais valioso, é pó que vale ouro. As grandes fortunas se avolumaram em hectares. Não há um milionário candango que não tenha uma história estreita com o solo. Mas o quadradinho também é minado por crônicas de desilusões. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), está dentro dos limites do DF a segunda maior favela do Brasil em termos de população. Sol Nascente tem hoje 65 mil habitantes, atrás apenas da Rocinha, no Rio.

Divulgada em novembro de 2012, a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios do Distrito Federal, realizada pela Codeplan, revela que pelo menos 158.179 residências foram construídas em território irregular. Além dessas, outras 166.541 famílias também não têm a escritura definitiva de seus imóveis. Enquanto milhares de pessoas esperam por um documento de propriedade, está nas mãos de um só homem a posse de 12 mil hectares, área onde caberiam juntos Ceilândia, Taguatinga, Samambaia, Recanto das Emas e Riacho Fundo. O ex-senador cassado e condenado pela Justiça a mais de 30 anos de prisão Luiz Estevão é o dono de um latifúndio que vai se tornar o celeiro de novos bairros e até cidades do DF. Ele é o exemplo de uma geração de milionários que levantaram suas fortunas durante a fase de desenvolvimento de Brasília.

Como Luiz Estevão, há incorporadores que ganharam dinheiro apostando na valorização das projeções. Paulo Octávio é um deles. Filho de um dentista, cresceu na classe média, mas chegou à maturidade como um dos homens mais ricos de Brasília. “No Rio de Janeiro, eles têm o petróleo. Nós temos a terra”, compara o empresário, dono de uma construtora imobiliária, shoppings e propriedades nos quatro cantos do DF e que agora já expande seus negócios para o Entorno da capital.

Política

Nem só riquezas a terra produziu em Brasília. Adubou o caminho para políticos que se fizeram com as promessas de moradia. A primeira eleição direta de Brasília, em 1989, alçou ao poder Joaquim Roriz, quatro vezes governador do DF, tendo como principal trunfo a terra. A história dele e de sua família é um capítulo à parte na ocupação e montagem da capital. A trajetória de sucesso de alguns fez crescer o olho de outros. Há uma turma que conseguiu mandatos seguindo a trilha da habitação, da regularização, da doação de lotes. Gente como o senador Gim Argello, os ex-distritais José Edmar, Pedro Passos e Batista das Cooperativas, além do atual secretário de Habitação, Geraldo Magela.

A questão fundiária também provocou terremotos que abalaram os Três Poderes. Não foram poucos os escândalos motivados pela disputa por territórios. No ano de inauguração da Câmara Legislativa, 1991, uma CPI foi instalada para investigar o mau uso da terra. Apontou que áreas arrendadas pela Fundação Zoobotânica eram entregues para funcionários da própria empresa ou parentes de políticos. Daí para os condomínios ilegais foi um passo. Quatro anos depois, em 1995, os deputados distritais fizeram a mais contundente investigação sobre os parcelamentos irregulares do DF, a CPI da Grilagem.

Nas crises envolvendo terras, um distrital passou 30 dias atrás das grades e outro teve a prisão decretada em plena campanha eleitoral, o que não lhe podou a vitória nas urnas. Um desembargador perdeu a condição de magistrado no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios por suposto envolvimento com grilagem de lotes na área mais nobre da capital federal, o Lago Sul. Um dos maiores escândalos do DF, a Operação Caixa de Pandora prova que é possível contar os 52 anos de Brasília costurando os episódios que se referem ao solo. Uma das principais suspeitas é de que 19 dos 24 deputados distritais da legislatura passada receberam propina para aprovar o mais importante instrumento de organização do espaço, o Plano Diretor de Ordenamento Territorial (Pdot).

Com milhares de processos envolvendo as disputas pela terra, o TJDFT precisou criar um braço especializado no tema, a Vara de Meio Ambiente, Desenvolvimento Urbano e Fundiário. Pelas mãos do juiz Carlos Divino Rodrigues tramitam ações que envolvem interesses bilionários e a solução para problemas sociais da qual dependem, pelo menos, 800 mil pessoas. Todos os processos dando conta do imbróglio das terras da capital. “O Estado no DF não tem o controle sobre a sua superfície”, resume Carlos Divino. O magistrado é o representante de uma força em direção à legalidade. Mas enquanto se busca uma solução para regularizar o passado, o Código Penal indica que o crime compensa. Os grileiros que construíram os principais condomínios ilegais nunca cumpriram pena na prisão.

O cântico da terra Cora Coralina

Eu sou a terra, eu sou a vida. Do meu barro primeiro veio o homem. De mim veio a mulher e veio o amor. Veio a árvore, veio a fonte. Vem o fruto e vem a flor. Eu sou a fonte original de toda vida. Sou o chão que se prende à tua casa. Sou a telha da coberta de teu lar. A mina constante de teu poço. Sou a espiga generosa de teu gado e certeza tranquila ao teu esforço. Sou a razão de tua vida. De mim vieste pela mão do Criador, e a mim tu voltarás no fim da lida. Só em mim acharás descanso e Paz. Eu sou a grande Mãe Universal. Tua filha, tua noiva e desposada. A mulher e o ventre que fecundas. Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor. A ti, ó lavrador, tudo quanto é meu. Teu arado, tua foice, teu machado. O berço pequenino de teu filho. O algodão de tua veste e o pão de tua casa. E um dia bem distante a mim tu voltarás. E no canteiro materno de meu seio tranquilo dormirás. Plantemos a roça. Lavremos a gleba. Cuidemos do ninho, do gado e da tulha. Fartura teremos e donos de sítio felizes seremos.