O globo, n. 31667, 19/04/2020. Especial Coronavírus, p. 12/13

 

Solidão no front

19/04/2020

 


A rotina de uma uti para doentes da covid-19 

Vigília. Visto pela fresta da janela de um leito, médico acompanha um dos pacientes internados na UTI para vítimas da Covid-19, no Hospital CopaStar: ação da equipe é definida em reuniões matinais

Há um contraste nítido. A correria permanente diante das variações do quadro de saúde dos pacientes é atravessada pela solidão incontornável dos doentes internados na UTI para tratamento de infectados pelo novo coronavírus do hospital Copa Star, em Copacabana, Zona Sul do Rio.

Unidade privada de elite, ainda tem vagas, ao contrário de vários espaços das redes privada e pública país afora. Ainda assim, repete o roteiro de estresse, medo, emoção e solidariedade a que estão submetidos os profissionais de saúde na linha de frente do combate à Covid-19, como testemunhou o GLOBO durante 13 horas de plantão no último dia 15.

Não há lógica ou rota identificada para o vírus, repetem como mantra os profissionais do time, formado por 60 médicos e 300 auxiliares, entre enfermeiros, técnicos de enfermagem e fisioterapeutas respiratórios. Isso torna o trabalho uma maratona de final incerto. Para eles, o som ao redor é uma das coisas que mais distinguem a UTI corona de uma convencional. De um lado, há mais apitos e marcadores sonoros, cada um indicando uma emergência distinta em mudanças bruscas da condição clínica dos pacientes — um traço da Covid-19, doença de evolução rápida mesmo para os mais experientes profissionais. Do outro, o silêncio do isolamento dos pacientes e da morte sem despedidas.

— Não sabemos sobre o vírus. É como se fôssemos forçados a lidar com o imponderável, ao mesmo tempo em que o imponderável é a única certeza que temos na vida. Não há certezas sobre evolução. O paciente pode estar bem em um dia e piorar no outro. Não há o “remédio certo” — sintetiza o médico Saulo Beiler, um dos plantonistas.

No Copa Star, da Rede D’Or, o corona não dispensa alvos. Os pacientes com comorbidades, doenças como diabetes ou hipertensão, são os mais propensos à intubação. Mas não há uma média clara de idade —um homem de 37 anos estava internado na semana que passou.

— Já atendemos pacientes de 30 a 95 anos. No total, 25% das mortes acontecem em pacientes que não são obesos, idosos ou diabéticos —explica o diretor-geral do Hospital Copa Star, João Pantoja.

PROTOCOLO

A mais marcante alteração do trabalho numa unidade intensiva é o protocolo de segurança para evitara infecção dos profissionais, diante de um vírus altamente contagioso. No vestiário, colocam-se as roupas, a touca de cabelo e a máscara N-95. No andar reservado pelo Copa Star aos pacientes com Cov id -19, a entrada em seis dos leitos da UT Ié precedida de espaços que os médicos chamam de “pressão negativa’’.

Nesta espécie da câmara, existe uma coifa que suga, filtra e renova o ar. Apressão atmosférica al ié mantida mais baixa do que no restante do hospital. Isto é para impedir que o ar contaminado entre ou saiada U TI e o ví russe espalhe.

Há uma segunda barreira de proteção na entrada dos quartos dos infectados. Ali, se acrescentam luvas, uma capacete transparente e um avental impermeável.

Agulhas, roupas e tudo o que entrou em contato com o doente é removido à saída dos leitos para ser incinerado.

Para deixar a UTI, mesmo para as tarefas mais triviais, como ir ao banheiro ou beber água, é preciso não só passar pela câmara de desinfecção como retirar touca e máscara. Tudo com cuidado cirúrgico. Ninguém usa barba, por exemplo, para que o vírus não se instale nos pelos.

—Tudo mudou. São novos protocolos, novos equipamentos. Aumentou a dimensão do trabalho. Sinto muita falta de entrar nos leitos sorrindo e receber um sorriso de volta, de conversar com o paciente. Não há como ver nossos sorrisos. O fato é que todo esse protocolo de segurança mudou a forma de trabalharmos — diz a enfermeira Andrea Zavalis, coordenadora de Educação Continuada da UTI.

ROTINA

Uma vez dentro da unidade, as particularidades da doença fazem com que o monitoramento dos internados seja ostensivo, especialmente na UTI A, que concentra aqueles em condição mais dramática.

Médicos, em pijamas azuis, e enfermeiros, em vermelho, observam em telas dados do quadro respiratório de cada doente — o nível de oxigenação alerta para a gravidade do caso. Enfermeiras atendem de hora em hora cada quarto, para verificar in loco o estado do paciente.

Esta observação frenética pauta o chamado round matinal, momento-chave em que os profissionais do turno se reúnem, computadores à mão, mas de pé, em frente aos leitos fechados, numa dinâmica diferente das reuniões de avaliação comuns, ditada pela urgência. Por duas horas, o encontro detalha medicação, situação clínica, prognóstico e procedimentos necessários e define a tarde do internado.

Participam eventualmente os médicos particulares dos pacientes, o que adiciona tensão à rotina. Em muitos casos, os profissionais de fora são porta-vozes de orientação expressa dos pacientes para não serem ressuscitados ou intubados, especialmente os mais idosos.

— É esse o momento delicado. O que vemos de mais comum aqui é a doença já instalada. O doente já vem com um quadro de pneumoniae a tomografia de pulmão indica o que chamamos de “vidro fosco”. É, na prática, um quadro infeccioso onde deveria haver ar. Coma demorados testes, é aí que descobrimos a doença. Agente nunca, nunca viveu isso—desabafa o pneumologista Rafael Pottes.

—É uma rotina muito emocionante e pesada. Ele chegou a aluga rum apartamento par aficar 18 dias longe da família, mas decidiu voltar par acasa, atendendo todos os requisitos de higienização definidos pelo hospital.

MORTE

No meio do round da última quarta-feira, a equipe mergulhou em um drama cada vez mais comum: a morte no isolamento. Um advogado de 60 anos não resistiu ao coronavírus e morreu. A família, sem contato com ele desde a internação, tentava convencer os médicos a vê-lo.

O protocolo internacional proíbe, e os profissionais se veem diante da árdua tarefa de impedir a despedida, na contramão da prática recente do hospital, de humanizar a UTI.

A emissão do atestado de óbito também repetiu um ritual de agora: sem resultado a tempo do teste, registrou Sars (síndrome respiratória aguda grave) e suspeita de coronavírus, diante do estado dos pulmões. O corpo seguiu para o necrotério do hospital lacrado em uma capa preta com zíper e só pôde ser reconhecido à distância por apenas um parente.

O advogado foi cremado, como recomenda o Ministério da Saúde. A higienização do quarto para a substituição do paciente demorou cerca de 90 minutos. Logo depois, estava ocupado por outro homem cujo quadro já não podia ser tratado na Emergência.

— É sempre muito difícil explicar essa impossibilidade, a morte sem a despedida —diz o médico Saulo Beiler.

TEMORES

Há 33 anos atuando como intensivista, Fábio Guimarães Miranda, diretor da UTI Coronavírus do Copa Star, se diz perplexo com o que já viu o vírus fazer e apreensivo com o que acredita que ainda está por vir. —Um amigo, meu braço direito, está internado aqui. Eu te confesso que não esperava a pandemia desse tamanho. Mas, quando recebemos os primeiros pacientes, em fevereiro, vimos que não é um vírus qualquer. Ele se dissemina de forma inédita. O organismo humano tem memória zero em relação ao coronavírus. Ele age diferente em cada código genético. O único remédio que conhecemos é a prevenção, o isolamento. Miranda, que também atua na UTI do Instituto Estadual do Cérebro, preocupa-se com o cenário na rede pública. — Se estamos atingindo o pico aqui, na classe média alta, em uma ou duas semanas isso se replica na saúde pública. No Hospital do Cérebro, há pacientes na porta, com risco de morte. Nunca vi nada assim. Me sinto impotente e extremamente triste —diz.

OTIMISMO E HUMOR

Não precisa ser médico para compartilhar o temor, como demonstra a auxiliar de limpeza, Ana Lúcia da Conceição. Moradora de Nova Iguaçu, teve os sintomas da Covid-19 mesmo fazendo uso constante da máscara N-95. Realizou o exame no hospital, mas deu negativo. —Trabalho há um ano aqui. Nesses últimos meses, mudou toda a rotina. Meu medo é que ninguém conhece esse vírus. Tenho visto muita gente morrer onde moro. Tenho uma filha de 6 anos. Antes, saía daqui e ia direto pegá-la. Agora, todo dia passo em casa e lavo minha roupa. E deixo tudo no quintal —conta.

Neste exército da resistência ao coronavírus, porém, ninguém esquece que a UTI é sobretudo um lugar para salvar vidas. Há otimismo, humor e humanidade. Os médicos gostam de se apelidar e inventar brincadeiras, como a pilha com o mais gordinho que poderia entalar na porta de um leito depois de um procedimento. Há cumprimentos de cotovelos e abraços em horas de boas notícias e na lembrança de um aniversário. E há solidariedade. Na última quarta-feira, chamou a atenção o abraço entre uma enfermeira e uma técnica, que reconheciam o cansaço uma da outra e trocavam impressões sobre os riscos e a evolução da doença nas ruas.

FORA DE COMBATE

O drama de médicos e enfermeiros se amplia ao ver colegas internados. Uma estimativa indica que há no sistema público de 25% a 30% de profissionais contaminados —no privado, o percentual é de 10%. Dois médicos internados na UTI pediram para falar com a equipe do GLOBO e revelaram a agonia de soldados que queriam o front, não o leito:

— Tive falta completa de apetite, gosto amargo na boca, 37 de febre. Dois dias depois, veio a dificuldade de respirar. Sou intensivista há 45 anos. Achei que era hora de fazer uma tomografia. Estava totalmente comprometido. Sinto saudade dos meus netos. E de estar no olho do furacão, onde sempre estive —diz o médico José Everardo Torres, de 69 anos, que também trabalha no Hospital dos Servidores. Márcio Ananias, de 53 anos, também intensivista, teve tosse forte há duas semanas. Entrou em quarentena. Perdeu o olfato e o apetite. Até que percebeu, durante um banho, um alteração drástica na frequência cardíaca. Foi internado após uma tomografia feita no hospital. Relata que há duas semanas não conseguia se levantar nem para sentar na cadeira.

— Minha energia se foi. Mas ontem (terça) já percebi uma melhora de 10%. Eu sempre soube que essa pandemia seria uma tragédia, por causa das comunidades, dos nossos conglomerados urbanos. Eu me preocupo com o coronavírus entre os mais pobres. Essa é uma doença que não faz sentido. Nenhum de nós ainda entendeu —avaliou Márcio. Ele teve alta e foi para casa no di a 16 de abril— disposto a voltar logo, mas para o front.