O Estado de São Paulo, n.46192, 06/04/2020. Política, p.A7

 

Esta é a primeira de uma série de crises em cascata

Fareed Zakaria

06/04/2020

 

 

Estamos apenas começando a enfrentar a magnitude do choque causado pelo coronavírus com a covid-19, e precisamos preparar a nossa mente para uma verdade dolorosa. Estamos nos estágios iniciais do que se tornará uma série de crises em cascata, que deverá reverberar no mundo inteiro. E não poderemos voltar ao que quer que nos pareça uma vida normal se as maiores potências não encontrarem alguma forma de cooperação para que seja possível administrar esses problemas juntos.

A primeira fase foi a crise sanitária nas principais economias do mundo. A próxima será a da paralisia econômica, cuja magnitude só começamos a compreender.

Nas duas últimas semanas, os Estados Unidos perderam cerca de 10 milhões de empregos, superando o total de 8,8 milhões de empregos perdidos em 106 semanas durante a recessão de 2008-2010. Mas esse é apenas o começo.

Em seguida, teremos certamente o perigo dos países que não puderem pagar suas obrigações. A Itália entrou na crise com o patamar mais elevado da dívida pública dos países da zona do euro e o terceiro maior do mundo. A dívida do país subirá astronomicamente com os gastos para combater as consequências econômicas da covid-19.

A Itália tem a terceira maior economia da Europa, mas é apenas um dos muitos países europeus que se defrontarão com o colapso fiscal. E isto acontecerá em um momento em que as economias mais dinâmicas da Europa, que frequentemente fornecem os recursos e as garantias para a salvação e os mecanismos de suporte, também vão estar debaixo d’água. A Alemanha, que não sofre uma recessão total em 40 trimestres, agora prevê que, este ano, sua economia registrará uma contração de 5%.

A seguir, virão as explosões no mundo em desenvolvimento. Até o momento, os números de infectados têm se mostrado baixos em países como Índia, Brasil, Nigéria e Indonésia. O motivo provável é o fato de estarem menos ligados pelo intercâmbio e pelas viagens do que o mundo avançado. Por outro lado, esses países também testaram apenas uma parcela da população, o que está mantendo os seus números artificialmente baixos.

Mas a não ser que nós tenhamos um golpe de sorte, e que o calor reduza a agressividade do vírus, esses países serão atingidos – e com violência. Todos eles dispõem de poucos recursos financeiros, e a perda das receitas fiscais, combinada com a necessidade de novos e consideráveis subsídios, poderá facilmente empurrá-los para versões próprias da Grande Depressão.

E então há os países petrolíferos. Ainda que a briga entre a Arábia Saudita e a Rússia se resolva, a essa altura, a demanda de petróleo terá entrado em colapso e não se recuperará tão cedo. Uma fonte do setor me disse que, segundo previsão de sua empresa, é muito provável que o petróleo caia a US$ 10 e permaneça ali.

Imagine-se o que isso significará para países como Líbia, Nigéria, Irã, Iraque e Venezuela, onde a receita petrolífera constitui o grosso das receitas do governo (e frequentemente de toda a economia) – mas só conseguem lucrar vendendo o óleo a preços superiores aos US$ 60 o barril. Esperem tumultos políticos, ondas de refugiados, até mesmo revoluções, em uma escala não vista há dezenas de anos – pelo menos desde a última fase do petróleo a US$ 10, quando a União Soviética entrou em colapso.

O mundo precipitou nesta pandemia com dois desafios. O primeiro é um gigantesco endividamento, público e privado. Com um Produto Interno Bruto global total de US$ 90 trilhões, a dívida pública e privada chega a US$ 260 trilhões. As duas maiores economias mundiais, Estados Unidos e China, têm dívidas a taxas do PIB de 210% e 310%, respectivamente. Isso seria mais administrável não fosse o segundo desafio. Essa crise está ocorrendo em um momento em que a cooperação global entrou em colapso e o país líder e organizador tradicional dessas iniciativas, os EUA, abandonou totalmente esse papel.

No mês passado, a reunião do G-7 sequer conseguiu emitir um documento conjunto porque os Estados Unidos se recusaram a assinar algo que não definia a doença como “o vírus de Wuhan” – uma disputa típica de escolares. A peça central de qualquer esforço global teria de ser uma estreita cooperação entre Estados Unidos e China. Ao contrário, o relacionamento entre os dois se encontra em queda livre, e cada lado culpa o outro. A reunião seguinte, do G-20, foi outro fracasso.

A própria União Europeia demorou a reconhecer a gravidade e a escala da pandemia. Uma declaração precipitada do presidente do Banco Central Europeu provocou a mais grave queda do mercado acionário da Itália de toda a sua história.

O que teria sido possível conseguir com uma maior cooperação global? Como grande parte da estratégia de contenção envolve as viagens, teria sido muito mais eficaz se as proibições das viagens tivessem sido coordenadas, assim como as assessorias.

Durante a recessão de 2008-2009, os bancos centrais e os governos trabalharam em conjunto, colaborando para conter e frear o contágio financeiro. Sem alguma assistência e esforço coordenados, países como o Iraque e a Nigéria explodirão, o que provavelmente significará um grande aumento do número de refugiados, espalhando doenças e terrorismo além de suas fronteiras.

Se os países mais ricos criarem pools de recursos e compartilharem informações, isso acelerará a chegada de tratamentos e de vacinas. E quando chegar o momento de reabrir as economias, uma ação coordenada – por exemplo, em termos de intercâmbio e viagens – fará com que todos nós tenhamos conseguido o maior golpe de sorte. O problema que enfrentamos neste momento é de grande magnitude e global – mas infelizmente as respostas são cada vez mais limitadas e confinadas.