Valor econômico, v.20, n.4979, 13/04/2020. Brasil, p. A5

 

Internação pode ser maior para jovens e adultos, indica estudo

Anai's Fernandes 

13/04/2020

 

 

Apesar de os casos mais graves e a taxa de mortalidade por covid-19 se concentrarem nos idosos no Brasil, assim como no resto do mundo, características demográficas e patogênicas do país podem levar a uma necessidade de internação bastante significativa de jovens e adultos, gerando sobrecarga adicional às unidades hospitalares e de terapia intensiva. Para especialistas, a combinação particular observada no Brasil reforça a necessidade de um isolamento social amplo.

Em um cenário em que 30% da população brasileira fosse infectada pelo novo coronavirus, cerca de 66% dos atingidos com necessidade de internação em algum momento teriam menos de 65 anos - 34% teriam entre 45 e 64, 28% estariam na faixa de 18 a 44 e outros 4% seriam crianças e adolescentes de 10 a 17 anos. Essas são algumas projeções de uma série feita por Diogo Ferrari, professor assistente na Universidade de Chicago, a partir de modelos de propagação do vírus e do mapeamento das hospitalizações por idade na cidade de Nova York, novo epicentro da pandemia.

Em maior ou menor grau, o cenário para o Brasil se replicaria em todos os Estados e suas capitais. Mas Ferrari observa que a proporção de pessoas entre 18 e 44 anos que precisariam de leitos é maior em regiões com Produto Interno Bruto (PIB) per capita menor.

Estados do Norte, exatamente onde sistemas de saúde já se aproximam do colapso, apresentam as maiores taxas estimadas para internação de jovens e adultos. No Amapá, por exemplo, 79% da população infectada que precisaria de hospitalização teria menos de 65 anos. No Amazonas, seriam 76%. Nesses dois Estados, bem como em Tocantins, Roraima e Acre, a faixa etária entre 18 e 44 já superaria, em necessidade de leitos, até mesmo o grupo de 45 a 64 anos.

No Sul e Sudeste, a situação seria um pouco menos pior. Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e Minas Gerais apresentam estimativas abaixo da média brasileira para a fatia de pessoas com menos de 65 que precisariam de leitos, com taxas variando de 61% a 65% dos infectados nesses Estados.

"No Amapá, por exemplo, em torno de 39% da população têm entre 18 e 44 anos. Em São Paulo, 26% da população paulista está nessa faixa etária. O resultado é que no Amapá pode haver mais casos de internações entre os mais novos do que entre os mais velhos por causa da distribuição demográfica", diz Ferrari.

"O centro-sul do país é muito mais envelhecido, enquanto o Norte é mais jovem. O Brasil é heterogêneo demograficamente por uma série de fatores, como os movimentos migratórios, a ocupação recente de determinadas regiões", explica Ana Maria Nogales, demógrafa e professora de estatística da UnB.

A pediatra intensivista Luciana Carpanez, pesquisadora da GVsaúde e coordenadora de quatro unidades de terapia intensiva (UTIs) pediátricas em hospitais públicos de São Paulo, diz que "aqui [no Brasil], aparentemente, [a covid-19] está começando a pegar um público um pouquinho diferente do observado em outros países, que é a faixa de jovens e adultos".

Por um lado, isso poderia ser explicado simplesmente porque o Brasil tem uma parcela maior de jovens na população. "Cerca de 15% têm menos de 15 anos, na China fica ao redor de 13% e, na Itália, são só 10%", diz Luciana.

Mas não é só isso. O Brasil, assim como outros países em desenvolvimento, também teria uma incidência maior de comorbidades associadas à covid-19 entre os mais jovens do que nos países desenvolvidos - aqui, notadamente diabetes e cardiopatia congênita, observa Luciana. "O Brasil é conhecido mundialmente pelo ótimo tratamento de doenças cardíacas congênitas. Enquanto em outros países os recém-nascidos morrem, aqui eles são operados e sobrevivem mais. Só que o coração nunca vai ser 100% normal e uma parcela significativa precisa fazer uso de medicamentos ao longo de todo a vida adulta", afirma.

O fato de o Brasil ser um país "mais jovem" do que Itália e Espanha, no entanto, não deve ser visto como uma "vantagem". "Nova York é o nosso exemplo. Não é uma cidade envelhecida e veja o que aconteceu. A demografia não 'joga' contra ou a favor. Ela é nossa característica. Somos um país com uma população mais jovem que, provavelmente, vai apresentar menos risco de morte, mas se você não der condições de atenção e infraestrutura em saúde para as pessoas se recuperarem, vamos ver uma mortalidade grande mesmo entre os mais jovens", diz Ana Maria.

Projeções como a apresentada ajudam governos a avaliarem medidas de contenção do vírus e também são úteis para medir a distribuição interregional de recursos, afirma Ferrari. "No mínimo, esses dados dizem que qualquer medida de isolamento têm que levar em conta dados demográficos. Caso se adote um isolamento vertical baseado somente na informação sobre o grupo de risco por idade, por exemplo, mas desconsiderando as informações demográficas e de capacidade hospitalar, temos a receita para o desastre e falência do sistema de saúde em várias localidades simplesmente porque os grupos mais jovens é que podem acabar sobrecarregando o sistema, mesmo sendo eles relativamente mais resistentes ao vírus."

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"Não estamos tão mal como os EUA porque temos o SUS"

Malu Delgado 

13/04/2020

 

 

Quando já tinha concluído sua graduação em medicina, Ana Maria Malik percebeu que "achava os pacientes ótimos, gostava deles", mas como "médico bom tinha de monte, o Brasil precisava era de arrumar o sistema onde os profissionais da saúde iam trabalhar". Hoje professora da Fundação Getúlio Vargas, coordenadora do FGV-Saúde, Malik é uma profissional que não só auxiliou a formatar a concepção do Sistema Único de Saúde (SUS) na Constituição de 1988 como também entende sua lógica e complexidade como poucos. Em entrevista ao Valor, pelo WhatsApp, ela afirma que o Brasil só está melhor do que os Estados Unidos no combate à pandemia do coronavírus porque existe o SUS.

"O que eu gostaria de acreditar é que o cidadão brasileiro percebe que nós não estamos tão mal como os EUA porque temos o SUS. Porque tem alguém que, nacionalmente, nos Estados, nos municípios, de maneira coordenada, está contando os casos, identificando o que está acontecendo, procurando uma vacina, dando satisfações nacionalmente." Segundo a professora, a população brasileira, na pandemia da covid-19, finalmente parece ter compreendido o valor do SUS e o conceito de universalização do sistema: "As pessoas estão percebendo que o setor da saúde está preocupado com cada um dos brasileiros, não está preocupado com quem tem plano de saúde, quem não tem plano".

A disseminação do vírus mostra aos brasileiros, continua ela, "um pedaço em que todo mundo usa o SUS". "Todo mundo usa o SUS na vigilância epidemiológica; todo mundo usa o SUS no que diz respeito à governança do sistema; todo mundo usa o SUS no que diz respeito à busca pelo desenvolvimento da vacina; todo mundo usa o SUS quando os laboratórios de saúde pública estão mobilizados para desenvolver testes para confirmação diagnóstica".

Se a percepção sobre a universalidade e os benefícios do sistema tornam-se evidentes e pode ser vista como um lado positivo da crise, há outro aspecto, esse sombrio, que a doença deste século também escancara, diz Malik. "Fica para quem quiser ver, mas isso é o de sempre: o SUS é subfinanciado tendo em vista o que se espera que ele faça."

Aos 65 anos -"sou do grupo de risco" -, a médica enfatiza que sua posição sobre o isolamento social é "a de todo mundo". "Tem que ficar em casa. A gente está muito melhor do que poderia porque aqui em São Paulo começamos a ficar em casa relativamente cedo", sentencia.

Com o foco na gestão da saúde e não na política, ela afirma que os conflitos entre o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, são um caso clássico do que a teoria aponta como problema de governança. "Precisa resolver quem manda no quê. Mas tenho que ser muito sincera: só sei o que sai na televisão e na imprensa", desconversa.

Questionada se o ponto central é a autonomia do Ministério da Saúde que está em jogo, a especialista discorda. Segundo ela, comando é uma coisa, diretriz é outra. Nacionalmente, o ministério estabeleceu diretrizes, defende. "Não se trata de ter autonomia, e não falo só do ministro. No modelo do SUS, São Paulo não pode ir contra um decreto do Brasil, mas, se não houver decreto, o Estado pode fazer o que acha que deve fazer. E se o governador de São Paulo faz um decreto, os municípios não podem ir contra. Ninguém pode ir contra o que o nível acima decide. Mas se o nível acima não regulamenta, então o nível mais periférico pode tomar suas próprias decisões."

Essa lógica não inviabiliza que as regiões do país e os Estados tomem medidas diferentes, exatamente porque a capacidade do sistema hospitalar é distinta, as curvas de contaminação não se dão da mesma maneira em todo o país. "As ações são locais, mas as diretrizes são nacionais porque o SUS é um sistema único de saúde. Tem alguém que está olhando, que está tentando mobilizar recursos, tem alguém que está falando que a saúde é mais importante, neste momento, do que a economia." Em resumo, a professora argumenta que os gestores não estão à espera de comando. "As pessoas estão esperando diretrizes, o que é completamente diferente."

Na opinião de Malik, "as diretrizes do ministério estão vindo" e ela elogia a equipe técnica que assessora Mandetta. "Aparentemente, o Ministério da Saúde está sendo assessorado por profissionais ótimos. A parte de diretrizes macro na área da saúde estão sendo muito bem apresentadas." As entrevistas coletivas diárias do Ministério da Saúde, acrescenta, são transparentes e fundamentais para definir essa orientação nacional. Porém, nas entrelinhas, ela deixa claro o incômodo com a confusão gerada justamente pela postura do presidente Bolsonaro.

"Quanto menos clareza de informação você tiver, ou quanto menos você confia na informação que tem, maior a possibilidade de conflito e de desvio. Então enquanto a gente fica nesse vai ter e não vai ter, fecha, abre, quanto mais isso fica obscuro, maior o ambiente de conflito e maior o ambiente para você tomar as próprias decisões. Mas felizmente estamos numa democracia. Graças a Deus!", enfatiza.

Outro desencontro que a deixa indignada é a polêmica sobre a hidroxicloroquina. "O pessoal estoca, sabe Deus por quê! Cloroquina tem indicação. Não é para sair tomando na louca, para ter em casa porque "vai que eu preciso". Tem efeito colateral sério, indicação precisa." A professora tem acompanhado todas as pesquisas e publicações sobre covid-19 nos principais journals científicos do mundo. "Ainda não há certezas. Não há evidências. Tem que tomar cuidado", adverte.

Ana Maria Malik traça dois cenários pós-pandemia. Um otimista e outro não muito animador. Pessoalmente, diz que seus sentimentos oscilam, e que ora aposta em um, ora acredita em outro. No otimista, crê que a população brasileira passará a ter confiança no SUS e a ver o sistema com credibilidade, o que já estaria ocorrendo. Como exemplo, ela cita o surpreendente percentual de pessoas que aderiram à campanha de vacinação contra a influenza - um índice nunca atingido em campanhas anteriores. A sociedade brasileira, pós-pandemia, vai exigir informações cada vez mais transparentes e claras de seus gestores e governantes, afirma a especialista.

Já no cenário pessimista, "vão continuar com a política de redução do SUS". E é aqui que ela faz uma reflexão sobre o paradoxo econômico: "Se você considera que a maior parte dos planos de saúde é corporativo, ou seja, tem plano quem é empregado, se houver menos gente empregada obviamente haverá menos gente com planos de saúde. Ou seja, o SUS precisará acolher mais gente".

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Entidades apontam subnotificação das mortes de indígenas pela doença

Isadora Peron

13/04/2020

 

 

Entidades da sociedade civil estão preocupadas com a subnotificação da pandemia do novo coronavírus entre a população indígena. Enquanto os grupos contabilizam a morte de cinco índios, os dados oficiais da Fundação Nacional do Índio (Funai) registram três óbitos. Essa diferença acontece porque os dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) leva em conta apenas índios que moram em aldeias - excluindo os chamados índios urbanizados.

O Ministério Público Federal (MPF) acredita que essa contabilização pode vir a ser judicializada no futuro. A 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, responsável por atuar junto a populações indígenas e comunidades tradicionais, vai discutir o assunto amanhã. No momento, mais do que as estatísticas, o órgão defende que é preciso garantir atendimento a todos os índios.

Até agora, pela contagem oficial, há nove casos confirmados de contaminação por coronavírus e três mortes, incluindo um índio yanomami de 15 anos, que vivia em Roraima, que morreu na última quinta-feira.

No início do mês, no entanto, foi confirmada a morte, por coronavírus, de uma senhora indígena, da etnia Borari, que morava em Alter do Chão, vila turística de Santarém (PA). No dia 5, uma nova morte aconteceu em Manaus, de um índio da etnia Mura.

Esse levantamento paralelo tem sido feita pelo Instituto Socioambiental (ISA), que lançou um painel para monitorar o avanço do coronavírus entre a população indígena. A entidade aponta que essa separação entre índios aldeados e não aldeados é um "problema estrutural" do Estado brasileiro.

Em nota, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) também cobrou uma posição das autoridades. "Nós da Apib repudiamos o racismo institucional da Sesai, que não está acompanhando e contabilizando os casos de contaminações e mortes dos indígenas que vivem em áreas urbanas", diz o grupo.

O secretário de Saúde Indígena, Robson Santos da Silva, afirma que nenhum indígena ficará sem atendimento, mas que a Sesai não tem estrutura para atender quem está nas cidades e que isso será feito pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Nas últimas semanas, lideranças indígenas lançaram a campanha "Fica na Aldeia". O slogan é uma adaptação do "Fica em casa" que vem sendo usado para promover o isolamento social.