Correio braziliense, n. 20792 , 26/04/2020. Ciência, p.14

 

Clima propício a novas pandemias

Vilhena Soares

26/04/2020

 

 

CIÊNCIA » A intensificação das mudanças climáticas e o aumento da proximidade entre seres humanos e animais selvagens podem facilitar a disseminação de vírus tão letais quanto o novo coronavírus, alertam pesquisas recentes e especialistas

A Covid-19 fez o mundo parar. Mesmo que em níveis diferentes, as pessoas são afetadas pelos efeitos do novo coronavírus. Enquanto a sociedade enfrenta esse enorme desafio, especialistas alertam que há a possibilidade de outras pandemias tão delicadas quanto a atual surgirem. E as relações desarmoniosas entre o homem e o meio ambiente, da caça predatória às mudanças climáticas, podem ser o gatilho para isso.

Em um estudo publicado na revista especializada Proceedings of the Royal Society B., cientistas americanos mostram, por meio de uma análise minuciosa, como a proximidade entre animais selvagens e humanos pode fazer com que surjam mais doenças infecciosas.

Uma das justificativas do grupo é que a caça, a degradação de áreas verdes para urbanização e pecuária e outras atividades do tipo aumentam o risco de propagação de vírus. “A exploração da vida selvagem, por meio da caça, da captura e do comércio, por exemplo, normalmente envolve um contato muito próximo, o que facilita a transmissão da doença às pessoas”, destaca ao Correio Pranav Pandit, pesquisador da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade da Califórnia e um dos autores do estudo.

Pandit e sua equipe reuniram um grande conjunto de dados sobre 142 vírus que são transmitidos de animais para  humanos e sobre as espécies que foram implicadas como potenciais hospedeiros. Usando a Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas, eles também examinaram padrões na abundância dos bichos, riscos de extinção e causas subjacentes ao declínio.

Nas análises, os investigadores observaram tendências claras no risco de transmissão zoonótica — de patógenos de animais para humanos. Identificaram, por exemplo, que animais domesticados, incluindo o gado, têm compartilhado o maior número de vírus, com oito vezes mais micro-organismos zoonóticos em comparação a espécies de mamíferos selvagens. “Provavelmente, isso é resultado das nossas frequentes interações estreitas com essas espécies há séculos”, cogita o autor.

Os animais selvagens que aumentaram em abundância e se adaptaram bem a ambientes dominados por humanos compartilham mais vírus, enfatiza Pranav Pandit. “Isso inclui algumas espécies de roedores, morcegos e primatas que vivem perto das casas e em torno de nossas fazendas (…) Os morcegos têm sido repetidamente implicados como fonte de patógenos de alto risco, incluindo a síndrome respiratória aguda grave (Sars), o vírus Nipah, o vírus Marburg e o ebola vírus”, ilustra.

Coordenador do Laboratório de Climatologia e Geografia da Universidade de Brasília (UnB), Rafael Rodrigues da Franca explica que a proximidade causa mudanças no organismo desses bichos. “A medida que os ecossistemas sofrem efeitos nocivos, vamos nos aproximando mais deles, e eles vão ficando com medo. Com isso, o sistema imune dos animais enfraquece, e aumenta o risco de transmissão de doenças”, detalha

Perda de habitat

No outro extremo, estão espécies ameaçadas cujo declínio da população está relacionado à caça, ao comércio de animais selvagens e à diminuição da qualidade do habitat. “Nossos dados mostram que as espécies classificadas como ameaçadas devido à perda e à exploração de habitat apresentam duas vezes mais risco de terem vírus zoonóticos do que outras categorias em risco”, explica o autor.

Para a equipe de cientistas, os dados obtidos no estudo podem ajudar a mudar a forma como humanos interagem com os animais. “Precisamos entender o impacto que causamos ao interagir com a vida selvagem, perceber que o surgimento de enfermidades é uma questão ambiental e encontrar maneiras mais sustentáveis de coexistência”, defende Pranav Pandit.

No caso do Brasil, o cientista acredita que, devido à grande quantidade de diversidade de espécies, as preocupações devem ser ainda maiores. “É um país tão grande e com grande biodiversidade que também apresenta habitats altamente mutáveis. Sabe-se que vários possíveis vírus emergentes representam ameaças à saúde pública no Brasil, incluindo flavivírus (causador de zika, dengue e febre amarela), arenavírus (da febre hemorrágica) e o mais recente Sars-Cov-2. Desenvolver a capacidade local de vigilância de animais e pessoas é fundamental para países como o Brasil”, afirma.

Frase

"Precisamos entender o impacto que causamos ao interagir com a vida selvagem, perceber que o surgimento de enfermidades é uma questão ambiental e encontrar maneiras mais sustentáveis de coexistência”

Pranav Pandit, pesquisador da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade da Califórnia

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Aumento de doeças tropicais

Vilhena Soares

26/04/2020

 

 

A maior proximidade entre humanos e animais selvagens e a intensificação das mudanças climáticas favorecem o surgimento de enfermidades tropicais, segundo Rafael Rodrigues da Franca, coordenador do Laboratório de Climatologia e Geografia da Universidade de Brasília (UnB). “Como a dengue e a malária, cujos casos sobem cada vez mais diante do aumento da temperatura do planeta e das alterações geradas no meio ambiente por causa disso. O mesmo poderá ocorrer com os coronavírus”, alerta.

A atual pandemia, segundo o especialista brasileiro, ilustra o quanto as formas de lidar com esses fenômenos são complexas. “As  pessoas têm comemorado as imagens de rios despoluídos, céu limpo, tudo gerado pela quarentena mundial, mas, infelizmente, o efeito dessas mudanças ainda é muito pouco, e não vai fazer muita diferença, não diminuirá a temperatura global. São necessárias medida mais amplas e severas. Assim como os governantes estão se reunindo em torno de medidas para combater a pandemia atual, isso precisa ser feito para as mudanças climáticas”, defende.

Na última quarta-feira, a Organização  das Nações Unidas pediu aos países-membros que adotem postura nesse sentido. A ONU lembrou que as ondas de calor que assolam o planeta desde 2015 são um perigo meteorológico ainda mais letal. “Precisamos frear a mudança climática tanto quanto a pandemia”, advertiu o secretário-geral da Organização Meteorológica Mundial (OMM), Petteri Taalas. “De fato, a Covid-19 provocou uma grave crise sanitária e econômica em nível mundial, mas, se não lutarmos contra a mudança climática, o bem-estar humano, os ecossistemas e as economias podem se ver ameaçados durante séculos”, complementou.

A ONU está ainda mais preocupada  porque “as crises econômicas precedentes foram, com frequência, seguidas de recuperações acompanhadas de um crescimento das emissões de carbono muito maior”, destacaram as autoridades, em comunicado. “Devemos ter a mesma determinação e unidade na nossa luta contra a mudança climática que nessa (luta) contra a Covid-19”, frisou Taalas.

Ar mais limpo

Imagens de satélite da agência espacial americana, a Nasa, mostraram redução de dióxido de nitrogênio, produzido por carros e indústrias, na cidade de Wuhan, na China, em fevereiro. Acredita-se que o fenômeno tenha sido provocado pelo isolamento da população em decorrência da pandemia da Covid-19. O mesmo ocorreu na Itália, mostrou a Agência Europeia do Meio Ambiente, que acredita que as cidades espanholas Madri e Barcelona passaram pela mesma experiência. Na Índia, um dos países que mais sofrem com poluição, a quieta foi expressa. Após três semanas de quarentena, no fim de março, os níveis de partículas poluentes no ar (PM 2.5) caíram de 91 microgramas por metro cúbico para 26 microgramas na capital  Nova Délhi.