O globo, n. 31659, 11/04/2020. Especial Coronavírus, p. 8

 

Esperança e medo

Alice Cravo

Juliana Castro

11/04/2020

 

 

Divididos entre a esperança e o medo, 323 mil profissionais de 14 categorias já se cadastraram no Ministério da Saúde para atuar na linha de frente do combate à Covid-19. "Senti as pessoas desesperadas", diz a fonoaudióloga Isabela Poli, que aguarda ser chamada.

Com 26 anos de carreira, a fonoaudióloga Isabela Poli se cadastrou para fazer algo totalmente diferente de sua rotina: participar diretamente do enfrentamento ao Covid-19. A categoria profissional dela é uma das 14 que o Ministério da Saúde convocou para cadastramento na ação "O Brasil Conta Comigo — Profissionais da Saúde", cujo plano é criar um banco de dados com profissionais que possam ser recrutados por gestores locais do Sistema Único de Saúde (SUS), em caso de necessidade, para combater o novo coronavírus. Até a última quinta-feira, uma semana depois de a iniciativa ser lançada, 693 mil profissionais estavam cadastrados. O número equivale a quase 14% dos cinco milhões que a pasta espera registrar durante a pandemia. Do total de cadastrados, 323 mil selecionaram a opção de que estão dispostos a atuar na linha de frente, como Isabela. — Me coloquei como voluntária. Não tem como saber os critérios do ministério para a convocação, mas o meu era ajudar. Não há uma indicação com o que a gente poderia fazer, mas me coloquei à disposição. Pensei que poderia ajudar em muitas coisas, que posso cadastrar famílias, fazer uma ponte entre os pacientes internados em isolamento e seus parentes. São situações necessárias, importantes no processo e que posso ajudar — diz Isabela, de 48 anos.

 DESCONFORTO

Nos grupos profissionais, o primeiro contato com a portaria trouxe o medo do contágio e a sensação de que a convocação era imediata. O portal, no entanto, fornece diversos filtros, como especialidade, comorbidades, endereço, idade e se a pessoa gostaria de ir para a linha de frente.

A convocação não é imediata nem garantida e não há indicação de que necessariamente a atuação do profissional seria com os pacientes infectados. —Não tive preocupação em me infectar em nenhum momento, a vontade de ajudar veio na frente. Senti as pessoas desesperadas por vários motivos. Acredito que o ministério levará as especializações em consideração para a convocação, até para não expor o paciente. Existem muitos filtros no cadastro, não será uma escolha às cegas. Acredito nisso —destaca Isabela. Vera Picado, bióloga com 22 anos de atuação, por outro lado, se sente desconfortável com o cadastro por não saber a área na qual atuaria, além de ter receio de levar o vírus para dentro de casa e contaminar sua mãe, de 80 anos, com quem mora. As duas estão em isolamento absoluto desde o início do mês de março. A bióloga, de 47 anos, construiu a sua carreira dentro dos laboratórios e não tem afinidade em lidar com pacientes, outro fator de preocupação. Vera pretende fazer o seu cadastro nos próximos dias:

— Tenho insegurança com a convocação porque não tem como saber ao certo o que a gente vai fazer. Me preocupa ter que lidar com situações técnicas que saem do meu campo de atuação, embora esteja no campo da biologia. Não me sinto segura, por exemplo, em lidar com pacientes, ainda mais nessa situação.

Fiz isso poucas vezes ao longo da minha vida por afinidade profissional. E com o coronavírus é tudo mais intenso e requer também uma preparação psicológica. Se pudesse escolher, atuaria sem problema em laboratórios. A iniciativa foi formalizada no último dia 2, quando o Ministério da Saúde publicou no Diário Oficial a lista com as áreas que deverão ter os profissionais cadastrados e capacitados nos protocolos clínicos da doença. O objetivo é formar um banco de dados com profissionais que possam ser recrutados por gestores locais do SUS, em caso de necessidade. A inscrição é feita por meio do site registrarh.saude.dataprev.gov.br e a conclusão da capacitação no curso é obrigatória, mas fica a critério do profissional selecionar a opção de trabalhar na linha de frente contra a Covid-19 ou não. Por isso, o próprio ministério diz não se tratar de uma convocação. Devem se inscrever os profissionais das áreas de: serviço social; biologia; biomedicina; educação física; enfermagem; farmácia; fisioterapia e terapia ocupacional; fonoaudiologia; medicina; medicina veterinária; nutrição; odontologia; psicologia; e técnicos em radiologia. Se forem chamados, os profissionais serão remunerados pelo ente da federação que os convocou — União, estados ou municípios. — Por enquanto, estamos apenas cadastrando para saber, repito, quem pode, quem quer e quem tem disponibilidade para ajudar os estados — esclareceu o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, durante uma das entrevistas coletivas. O ministério diz que a iniciativa é importante porque, logo no início da pandemia em países como a Itália, por exemplo, 45% da força de trabalho foram perdidaos porque profissionais estavam infectados. Ao contrair a doença, as pessoas levam até 14 dias para voltar ao trabalho. Ainda que com algumas ressalvas, como a exigência para que haja equipamentos de proteção, os conselhos federais dessas áreas aprovaram a iniciativa e nove já enviaram ao Ministério da Saúde a lista com os nomes de quem está com o registro profissional ativo.

Depois de preencher o cadastro, o profissional terá acesso ao curso de capacitação —feito todo pela internet — e, ao final, receberá um certificado. O ministério informa que, caso o profissional não faça o cadastro ou não conclua o curso de capacitação, informará ao conselho correspondente. Embora incentivem a participação, a maioria dos conselhos afirmou ao GLOBO que a atuação na linha de frente é opcional e, por isso, não pretende punir os profissionais que não se cadastrarem.

"Dá insegurança com a convocação porque não sabemos ao certo o que a gente vai fazer. Se pudesse escolher, atuaria em laboratório" _

Vera Picado, bióloga

"Não tive preocupação com me infectar em nenhum momento, a vontade de ajudar veio na frente. Senti as pessoas desesperadas" _

Isabela Poli, fonoaudióloga