O globo, n. 31661, 13/04/2020. Especial Coronavírus, p. 11

 

O vírus da revolução

13/04/2020

 

 

Brasil pós-pandemia não será mais o mesmo, afirmam pensadores 

PILAR OLIVARES/REUTERSFé. Voluntários fazem oração em frente à Catedral de São Sebastião, no Centro, antes de iniciarem uma distribuição de alimentos para a população de rua no Domingo de Páscoa, em ação organizada pela Arquidiocese do Rio de Janeiro

 ‘As pessoas se pautarão mais na ciência para tomar decisões’

MOZART NEVES RAMOS - Titular da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira do Instituto de Estudos Avançados da USP-Ribeirão Preto

A minha geração jamais passou por algo similar à Covid-19. As pessoas começaram a perceber que o mundo, e não apenas parte dele, está diante de um inimigo invisível, o coronavírus. E o pior, sem as armas adequadas para combatê-lo. A ciência corre contra o tempo. Certamente, após esta pandemia, os países deverão passar a colaborar mais no campo da ciência e a destinar mais recursos para este fim. As pessoas cada vez mais se pautarão na ciência para tomar decisões, exceto aquelas que preferirem continuar presas à escuridão da ignorância.

No Brasil, como também na maioria dos países infectados pelo vírus, escolas e universidades estão fechadas e sem uma perspectiva de retorno. Estes tempos estão nos mostrando que o ensino mediado por diferentes tecnologias, incluindo aqui a inteligência artificial, pode nos ajudar não só a repensar as nossas escolas, mas a nossa maneira de fazer as coisas. Ganhará velocidade a possibilidade de uma convivência harmoniosa entre as aulas presenciais e as aulas mediadas por tais tecnologias, em prol de um projeto pedagógico que atenda às necessidades de uma educação voltada para o século XXI. Esta é uma oportunidade para repensar o papel da escola e dos pais na vida escolar dos filhos.

‘Sem o SUS, nós hoje estaríamos muito pior’

LÍGIA BAHIA Médica sanitarista e professora da UFRJ

 O coronavírus mostrou que o rei estava nu. Fotos de hospitais luxuosos, exclusivos para ricos, infectados após viagens ao exterior, foram substituídas por imagens de leitos organizados para atendera todos. Sem o SUS, contando apenas coma assistência privada, estaríamos muito pior. Faz diferença contar com núcleos técnicos nas secretarias, no Ministério da Saúde e em instituições de pesquisa. Com o SUS, ainda que frágil para enfrentar uma pandemia, não partimos do zero.

Passamos mais de 30 anos discutindo que a saúde pública era jurássica, ineficiente, sorvedora de recursos que seriam melhor aplicados na atenção privada. O SUS foi escanteado, maltratado por diferentes governos, que não souberam priorizar um sistema público de saúde que articule a prestação de serviços coma vigilância sanitária e epidemiológica, a produção de insumos e a pesquisa. O nome SUS passou ater conotação negativa. Para fugir do SUS, passou-se a “botar no ar” programas de cada gestão.

Atualmente, o SUS e os profissionais de saúde se tornaram os heróis da pátria. A tragédia sanitária evidenciou que o vírus atravessa as barreiras de condomínios. Após reduzir os casos de Covid-19, teremos que fazer um grande esforço para continuar organizando um SUS potente e qualificado. Cortar recursos para a saúde pública e subsidiar o setor privado nunca mais.

‘O atual presidente falhou inapelavelmente’

MARCOS NOBRE - Professor da Unicamp e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)

 Bolsonaro continua lutando contra o “sistema”. E o país inteiro continua esperando que o sistema funcione. O país continua esperando que os equipamentos cheguem aos hospitais e aos profissionais de saúde que nos defendem em primeira linha. Continuamos esperando que as pessoas e os negócios tenham o amparo de que necessitam para sobreviver. Continuamos esperando um plano. Para a emergência de agora e para depois que o pior tiver passado.

Mas Bolsonaro continua atirando a esmo. E ainda se dá o direito de atacar quem está colocando a mão na massa para encontrar soluções. O atual presidente falhou inapelavelmente. Jogou fora o tempo precioso que nos tinha sido dado pela experiência de outros países para preparar o Brasil diante da crise.

Política e moralmente, Bolsonaro perdeu a autoridade para continuar a ser presidente. Pensar o futuro significa pensar como vamos reconstruir nossa democracia de maneira a evitar que uma situação de fragilidade institucional como essa se repita.

Acontece que a sobrevivência das pessoas vem antes de acertar as contas com um presidente irresponsável e desumano. Para podermos pensar o futuro, o primeiro passo agora é apoiar toda iniciativa democrática que isole Bolsonaro e salve vidas.

‘Toda crise também abre uma fresta’

LILIA SCHWARCZ Historiadora e antropóloga, professora da USP e de Princeton

 O mundo já passou por várias pandemias, se perdeu e se encontrou. Cólera, lepra, peste negra, gripe espanhola, tuberculose, varíola, tifo, ebola, zika são exemplos da história da humanidade, mas que nesta hora pouco importam. Costumamos achar que nosso sofrimento é sempre único, e que nossa experiência é evento singular e isolado no tempo —o que não chega a estar errado.

Testemunhos dos que sobreviveram a grandes catástrofes costumam destacar como suas vidas mudaram para sempre. Pandemias são como guerras mundiais: fáceis de entrar, difíceis de sair. Toda crise fecha um aporta: perdemos amigos, lidamos com o luto, não encontramos mais a rotina, sentimos falta dos familiares ou de andar pelas ruas. Mas toda crise também abre uma fresta. Hora de passar a limpo o que vale apena, de nos emocionarmos com os grandes e pequenos gestos que inspiram a nossa própria solidariedade, de nos sentirmos mais responsáveis, e de exercer nossa “com-paixão” cidadã, identificar-se com o outro e aprender com ele.

O termo crise vem da palavra decisão. Hora de decidir sobre os caminhos que queremos tomar, as reuniões que não podemos cancelar, as viagens que talvez não precisamos realizar, a nova normalidade que queremos criar. Crise é como cicatriz; está sempre lá para lembrar do pedaço de nós que ficou no “passado”, mas que insiste em permanecer no “presente”.

‘Que a dor de agora possa, amanhã, ser a cura’

LUIZ ANTONIO SIMAS Escritor e professor de História

As ruas estão vazias, mas não é de hoje que agonizam. Há tempos prevalece entre nós um modelo de cidade destruidor das sociabilidades que as ruas cotidianamente construíam. Encaradas como pontos de passagem, pensadas a partir do medo e da lógica da circulação de carros, mercadorias e corpos apressados, as ruas se desencantam.

A pandemia passará e voltaremos às ruas. Mas será que elas continuarão experimentadas apenas como pontos de passagem? Ou será que priorizaremos os encontros, a vida comunitária, os laços de afeto, as pausas para o flozô diante da loucura dos relógios?

Um dos mitos mais conhecidos do candomblé diz que Omolu, recém-nascido, contraiu a varíola e foi abandonado por Nanã. Iemanjá o adotou e cobriu o corpo dele, deformado pela peste, com palha da costa. O rosto de Omolu não foi visto durante muito tempo. Ele cresceu causando medo e repulsa. Um dia Iansã mandou os ventos levantarem as palhas que cobriam Omolu. O que se viu não foi um corpo deformado. Omolu estava curado e seu rosto, tão bonito, brilhava.

Que a dor de agora possa, amanhã, ser a cura das nossas mazelas. Precisamos de corpos livres em ruas encantadas, capazes de olhar o outro — aquele que causa medo e repulsa —e perceber que debaixo da palha da costa vive a beleza do senhor do sol.

‘É possível parar, diminuir o consumo, a devastação’

CHRISTIAN DUNKER Psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP

 Quero crer que a pandemia que fez com que nos recolhêssemos às nossas casas trará efeitos de redefinição em nossa experiência de intimidade, com novas fronteiras entre o que chamamos de público e de privado. Nossa economia libidinal aprenderá que nem toda solidão gera verdadeira solitude, nos tornaremos mais amigos do vazio que nos constitui. Esta dieta narcísica forçada, que nos fará baixar da arrogância, nos levará a admitir que é possível parar, diminuir o consumo, a devastação e a sensação de fuga para a frente que o neoliberalismo nos fez engolir.

Reteremos a experiência geral de repactualização, reconhecendo que havia valores superestimados, não só no mercado financeiro, mas na vida comum das pessoas. Confiaremos menos no uso instrumental do direito para oprimir os mais vulneráveis e mais na justiça que a palavra das pessoas pode criar. Teremos mais apreço pela saúde pública, pela ciência e pela pesquisa. Boa parte das previsões acima é pensamento desejante (wishfull thinking). Mas talvez esse seja o único resíduo realmente importante: a retomada da capacidade de sonhar. Deixaremos para trás tanto a biopolítica quanto a necropolítica, rumando para uma oniropolítica, uma política que dê lugar para o sonho de um mundo diferente.