O globo, n. 31662, 14/04/2020. Especial Coronavírus, p. 11

 

Entrevista - Pierre Salama: "Estamos diante de uma nova grande mudança"

Elizabeth Carvalho

14/04/2020

 

 

Crise pode ser comparada à de 1929 e deverá fazer países ricos levarem indústria estratégica de volta a seus territórios

O motor do caminhão parou de repente, em noite escura, no meio da estrada deserta, e o motorista não sabe como fazer para buscar socorro. Esta seria uma metáfora para o desafio que se coloca diante do Ocidente em relação aos destinos da economia num mundo pós-Covid-19. Há os que estão convencidos de que recuperar o motor e seguirem frente está fora de cogitação. Entre eles, o economista francês Pierre Salama,que observa que o motor só sobreviverá se o caminhão mudar de percurso. Salama é professor emérito da Universidade de Paris 13 e ex-aluno de Celso Furtado. Está convencido de que acabaram os dias de um sistema de globalização tal como foi praticado até agora.

Já é possível medir o tamanho da crise provocada pela pandemia do coronavírus?

É uma crise espantosa. O modelo econômico das últimas décadas está desmoronando por causa de um vírus. Isso expõe a vulnerabilidade extrema de um sistema assentado sobre uma globalização selvagem, capaz de provocar o colapso internacional de uma cadeia de valor com a perda de soberania de países avançados sobre produtos essenciais. Está claro que a crise de hoje é muito mais importante que a de 2008. É uma crise estrutural, no mínimo do mesmo porte da de 1929. Será indispensável repensar a economia nas suas relações humanas e nas relações entre Estado e mercado.

Alguns veem sinais de que o capitalismo entrou em fase terminal...

O fim do capitalismo é uma canção que todos conhecemos desde 1914, mas ainda sobram muitos recursos. É in questionável, porém, que estamos fechando um ciclo. O capitalismo não será mais oque foi no ano passado. Estamos diante de uma nova grande transformação, em favor da preservação dos bens comuns, que em tese deverá exigir o controle dos cidadãos sobre a relação Estado-mercado.

Vivemos também um deslocamento hegemônico do Ocidente para o Oriente, que vai repercutir sobre essas novas escolhas...

Sim, ele se acelerou nos últimos 15 anos. Mas é provável que estejamos diante de um novo sistema de relocalização industrial radical dentro dos países ocidentais, e as capacidades de intervenção da China serão bastante alteradas.

Muitos imaginam que a China sairá com mais força da pandemia...

Nada será como antes. Há anos se discute a “desglobalização”, tema do qual a extrema direita se apropriou nos países avançados. Aforçada Chinas e concentrou na sua transformação em ateliê do mundo. Esta agora pode ser sua fraqueza. Se as relocalizações crescerem de maneira significativa, em especial nos bens de alta tecnologia, é pouco provável que a China saia fortalecida.

A pandemia evidenciou a precariedade de França, Itália e Espanha nos meios de combate à Covid-19. Este não parece ter sido o caso da Alemanha. Por quê?

Ao contrário de seus vizinhos, a Alemanha não conheceu nos últimos 15 anos um processo de desindustrialização. Pelo contrário, sua indústria se fortaleceu. Em termos de PIB, a indústria alemã produz o dobro da França. O exemplo da indústria farmacêutica é gritante,porque na França 80% dos medicamentos vêm da Ásia, como consequência da transnacionalização das empresas francesas.

É esta a razão da falta do reagente que impede a aplicação de testes em massa num país rico como a França?

Sim, ore agenteéim portado, como as máscaras de proteção respiratória eosr espiradores artificiais. É assim ques e evidencia a perda de soberania sobre problemas estratégicos.

A principal medida anticíclica de vários países europeus é o financiamento da remuneração dos assalariados que ficaram inativos por causa do isolamento social. Na França, ele é de 80% do valor dos salários. Na Alemanha é de 60%. Por que a diferença?

O desemprego parcialé a forma de evitar que a maior parte dos trabalhadores seja demitida, para que a empresa possa conservar seu capital humano e amanhã ter condições de sair mais facilmente da crise. Segue também um alógica social, porque um aumento grande de desempregados pode significar uma quebra do seguro-desemprego. A Alemanha adotou um critério mais austero, ainda que sendo mais rica, talvez imaginando revertera pandemia mais facilmente, porque tem um sistema de prevenção mais eficaz. O problema é que a Alemanha é o país europeu que mais irá sofrer coma crise, porque é um país exportador, e o comércio internacional está desmoronando.Essa estratégia terá que mudar.

Já existe um plano de nacionalizações na mesa do ministro da Economia da França. É eficaz?

Creio que é possível fazer algumas nacionalizações em setores estratégicos, como é o caso da indústria farmacêutica. Por outro lado, é preciso pressionar as empresas privadas a investirem mais no país. A medida mais acertada foi ade impedir o  de dividendos. Não é possível pagar dividendos e ao mesmo tempo exigir ajuda do governo na isenção de impostos.

Ao contrário da direita nacionalista europeia, no Brasil temos um governo subordinado aos EUA. Que cenário prever para o Brasil no mundo pós-Covid-19?

Trágico. Se considerarmos a pandemia uma guerra, como fez Macron, Bolsonaro é um criminoso de guerra. Seu líder, Donald Trump, mudou de posição e se apresenta como um guerreiro contra o vírus. Bolsonaro perdeu sua hora.