O globo, n. 31660, 12/04/2020. Opinião, p. 2

 

Coronavírus desvenda um Brasil invisível

12/04/2020

 

 

Há correlações feitas por historiadores entre “pestes” e mudanças nas sociedades enfermas enquanto se debatem contra doenças desconhecidas, de resultados devastadores. A “peste negra”, ou bubônica, transmitida a partir de ratos e pulgas, no século XIV, é relacionada, entre outros eventos, ao enfraquecimento da ordem feudal. Estima-se que cerca de um terço da população da Europa foi dizimada, reduzindo a força de trabalho e afetando o sistema de produção da época. Qual será o efeito da Covid-19? As correlações feitas são imprecisas. Mas o acervo de conhecimento científico de hoje leva a supor que é questão de tempo o desenvolvimento de uma vacina —um ano e meio ou dois —e/ou a obtenção de resultados positivos nas pesquisas em curso ao redor de planeta na busca de substâncias químicas usadas em medicamentos já existentes que possam conter o avanço do Sars-CoV-2. Não será a primeira vez.

Seja como for, são grandes e reverberarão durante muito tempo os efeitos no mundo globalizado da pandemia iniciada em janeiro na China, ou talvez no último trimestre de 2019, na região de Wuhan. A economia mundial travou, em um movimento em cascata iniciado na indústria chinesa fornecedora de componentes, numa onda que tomou a Ásia, ocupou a Europa e invadiu as Américas, estando em fase de desembarque no Brasil, enquanto o coronavírus aumenta o número de vítimas. Há quase dois milhões de infectados no mundo e mais de cem mil mortos. Já é a maior pandemia em cem anos, desde a Gripe Espanhola de 1917/18. Mesmo com todas as disparidades entre os países, é arriscado apostar que se repetirão tragédias medievais. Mas isso não tira a importância de análises e debates sobre o que a crise já histórica do coronavírus traz de alertas para a Humanidade.

Um terço da população europeia não ser dizimada não significa que este coronavírus não traga mensagens a serem decifradas para melhorar a qualidade da vida na Terra. Entre elas, há a demonstração de que fechar fronteiras não protege contra todas as ameaças, algumas mortais. A pandemia ensina que a cooperação entre as nações é o melhor caminho. Assim como é impossível um país produzir tudo de que necessita, mesmo que haja quem use a crise como argumento para se adotar o caminho oposto. Será gritante retrocesso se a Covid-19 afastar países.

O coronavírus tem trazido para o primeiro plano das atenções uma parte substancial do Brasil que não está à vista de todos ou não completamente: comunidades, ou favelas, em situação sanitária deplorável devido ao histórico descaso de governantes com a infraestrutura de água e esgoto e condições urbanísticas mínimas de habitação. A paralisação da economia drenou o dinheiro em circulação e logo sufocou dezenas de milhões de trabalhadores informais moradores deste outro país, “invisíveis” para o Estado e a muitos brasileiros. Enquanto aguardam os R$ 600 do governo, sobrevivem da ação solidária de organizações sociais e de iniciativas individuais generosas. Passada a crise, que este outro Brasil que está sendo exposto pelo coronavírus com todas as suas mazelas não volte para a invisibilidade.