O globo, n. 31660, 12/04/2020. Especial Coronavírus, p. 6

 

Ajudar sem olhar a quem

Vera Araújo

12/04/2020

 

 

No rio, 26 mil voluntários se inscrevem em programa

A rotina do médico intensivista Bruno Feijó, de 43 anos, se tornou ainda mais estressante com a chegada da Covid-19, que já matou mais de cem mil pessoas no mundo e deixou cidades inteiras isoladas. Na semana passada, ele cuidava de cinco pacientes infectados, dois deles em estado gravíssimo no CTI. Mesmo se dividindo entre diferentes hospitais, o médico decidiu abrir mais um horário em sua agenda para se tornar um voluntário na luta contra o coronavírus. Ele é um dos 26.031 profissionais que se inscreveram no programa do governo do Estado do Rio para doar um pouco de seu tempo e conhecimento.

— O Brasil vai precisar de muita ajuda quando a doença explodir. Se todos puderem se doar um pouquinho, disponibilizar algumas horas de seu tempo, poderemos minimizar o sofrimento dos doentes —disse o médico, que há 15 anos atua em centros de terapia intensiva. — Essa é a hora de mostrarmos o valor da medicina brasileira e o nosso espírito solidário.

VÁRIAS PROFISSÕES

Mas não são só médicos, enfermeiros, psicólogos e farmacêuticos que estão dispostos a enfrentar a pandemia sem receber dinheiro por isso. A lista inclui babás, merendeiras, atendentes de call center, chefs de cozinha, porteiros, seguranças, músicos, teólogos, cuidadores de idosos, motoristas, copeiras, recepcionistas, terapeutas, veterinários, profissionais de TI, advogados e jornalistas. As inscrições foram abertas pela Secretaria estadual de Saúde no último dia 18. Entre os candidatos, metade é de estudantes, e os demais, profissionais que já atuam no mercado de trabalho. Os interessados devem preencher um formulário disponível no site voluntarioscoronavirus.rj.gov.br. Já no início do documento fica claro o motivo da missão: “Em tempos de medo e incerteza, solidariedade faz toda a diferença”.

APOIO FUNDAMENTAL

O site ainda está aberto, mas a primeira triagem já se encontra em andamento para selecionar profissionais de saúde. Quando houver demanda, em caso de expansão da pandemia, os inscritos serão chamados para atuar em hospitais da rede pública.

— A solidariedade fará a diferença para salvarmos vidas — disse o secretário estadual de Saúde, Edmar Santos.

— Os profissionais de saúde são nossa primeira linha de defesa no combate ao coronavírus. E o reforço das equipes, com a participação dos voluntários, será fundamental neste momento delicado que a saúde pública do Rio de Janeiro enfrenta.Os voluntários vão ajudar muito num cenário de caos. Saíremos diferentes depois que tudo isso acabar.

Na linha de frente nos hospitais em que trabalha, Bruno Feijó pretende tirar seis horas por semana de seu tempo de lazer com a família para se dedicar ao trabalho voluntário. No dia seguinte à entrevista por telefone ao GLOBO, ele apresentou sintomas da doença e teve que ficar em quarentena. Estudante de enfermagem, Isabella Oliveira, de 21 anos, teme a contaminação, mas não pensou duas vezes na hora de se inscrever.

— Minha mãe não aprovou minha decisão, mas essa é a minha chance de ajudar. Entendo a minha mãe porque ela conhece o sistema de saúde, sabe que falta proteção. O importante é que a gente se una para evitar que o pior aconteça —disse Isabella.

UM BOM EXEMPLO

Ainda mais jovem, Douglas Borges, de 19 anos — ele tinha 18 quando se inscreveu —, teve o apoio da família.

—Meu pai está feliz com a minha escolha. Dizer que não estou ganhando nada sendo voluntário é uma grande mentira. Salvar vidas não tem preço — afirmou o estudante de enfermagem.

A vontade de fazer o bem também moveu uma médica com 30 anos de carreira. Cristina Quadrat, de 56, afirma que o momento é de pensar nas outras pessoas:

— É um ato de humanidade. A questão não é quanto eu ganho, mas o quanto eu ajudei — argumentou a médica. Cristina Quadrat, que morou cinco anos em Portugal, já trabalhou num hospital que estava preparado para receber pacientes contaminados pelo vírus ebola. Uma experiência que, segundo ela, pode ajudar muitas pessoas agora, no Rio: — Infelizmente, tudo indica que essa doença vai afetar demais os moradores de rua e as comunidades carentes. Só espero que não seja preciso decidir quem deve viver e quem deve morrer, como aconteceu lá fora.

Se o assunto é cuidar das pessoas, Emily Carvalho da Costa de Souza, de 20 anos, tem graduação. Babá, ela foi uma das primeiras a se inscrever no projeto:

— Eu venho de uma família humilde de Tanguá, onde aprendemos a ser prestativos. Minha avó sempre ajudou as pessoas, minha mãe seguiu a mesma linha. Eu não poderia ser indiferente ao que está acontecendo. Sou babá, mas posso dar uma palavra de conforto a quem luta pela vida em um leito de hospital. Minha avó sempre fala “dar é melhor do que receber”. Penso que hoje tenho algo a oferecer para quem precisa. Talvez, amanhã, seja eu ou alguém da minha família que precise. É sempre bom ajudar, doar o nosso tempo a quem sofre.