Valor econômico, v.20, n.4977, 08/04/2020. Política, p. A6

 

Mandetta transfere decisão sobre isolamento social a municípios

Fabio Murakawa 

Estevão Taiar

Murillo Camarotto

Rafael Bittencourt

08/04/2020

 

 

O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, suavizou ontem o discurso em relação ao uso da hidroxicloroquina no tratamento de pacientes em fase não aguda da covid-19. Ele também justificou a flexibilização na política do ministério para o isolamento social, divulgada na véspera, dizendo que quer dar "parâmetros" para que as prefeituras possam adotar ou não as medidas.

A defesa do uso do medicamento e a política de isolamento social estão no cerne do desentendimento de Mandetta com o presidente Jair Bolsonaro, que quase culminou anteontem na demissão do ministro.

Mandetta vinha invariavelmente recomendando a aplicação da cloroquina apenas para pacientes em estado grave ou crítico, mostrando-se contrário ao uso em pacientes no estágio inicial da doença ou com sintomas leves. Ontem, em entrevista coletiva no Palácio do Planalto, o ministro foi questionado sobre o tema e delegou a responsabilidade sobre a prescrição para os médicos.

"A prescrição médica no Brasil, a caneta e o CRM do médico, está na mão dele. Se ele quiser comunicar o paciente dele, 'olha, não tenho nenhuma evidência, acho que poderia usar esse medicamento, com tal risco, pode ter isso', e se ele se responsabilizar individualmente, não tem óbice nenhum", respondeu. "Mas para que nós possamos assinar que o Ministério da Saúde recomenda que se tome essa medida, precisamos de um pouco mais de tempo para saber se isso pode ser considerado uma coisa boa ou se tem efeito colateral."

Anteontem, o Ministério da Saúde propôs afrouxar o isolamento social a partir do dia 13 de abril em municípios onde metade dos leitos estejam disponíveis. Nesses locais, a pasta passou a propor o chamado isolamento seletivo, para pessoas idosas ou com doenças crônicas.

A medida tem como objetivo estimular uma retomada gradual da atividade econômica e da circulação de pessoas. As restrições em cidades e municípios tem colocado em confronto o presidente Bolsonaro com governadores.

"Aquilo são princípios. Pega uma cidade como São Paulo. Tem todos os elementos para dobrar, triplicar, reforçar [o isolamento] se quiser porque tem elementos. Eu estou dando parâmetros", disse Mandetta. "Eu pego uma cidade por exemplo Maracaju, no meu Estado (MS). E falo 'vou parar tudo', mas não temos nenhum caso..."

Segundo Mandetta, o ministério estabeleceu critérios a pedido das prefeituras. "Não vai ser o ministério que vai falar fecha o bar, o teatro ou para o ônibus, aumenta isso, não vai para o metrô", disse. "Eu posso dar a eles os 'guidelines', eu posso dar a eles os critérios."

Mandetta fez ontem uma reunião por teleconferência com o embaixador da China. E afirmou que haverá um "esforço comum" para concretizar as encomendas de equipamentos que o Brasil pretende importar para combater a pandemia. "Iniciaremos um trabalho conjunto [...] para que cada compra que formos fazer garantirmos mais transparência, solidez, informações a respeito", disse.

O ministro demonstrou novamente ontem preocupação com a falta de equipamentos de proteção e, principalmente, de respiradores para enfrentar o pico da crise provocada pelo coronavírus, que inda está por vir.

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Desentendimento é 'insuperável'

Andrea Jubé

Fabio Murakawa

Matheus Schuch

08/04/2020

 

 

Um dia depois do impasse em torno da demissão do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, o governo deu respostas evasivas sobre a efetiva permanência do ministro na Pasta e no gerenciamento da pandemia do coronavírus. Nos bastidores, fontes próximas ao presidente Jair Bolsonaro afirmam que a divergência não está superada. Mandetta fica no cargo, por enquanto. Mas a situação é vista como “insuperável”.

Segundo essas fontes ouvidas pelo Valor, o ministro só não foi demitido na segunda-feira porque isso causaria “um terremoto político”. Mas Mandetta passa por um processo pelo qual já passaram outros ministros como Gustavo Bebianno (Secretaria-Geral) e Carlos Alberto dos Santos Cruz (Secretaria de Governo), demitidos após semanas ou meses de fritura por parte do presidente e do núcleo ideológico do governo.

A pressão dos chefes de outros Poderes, associada à reação do mercado e das redes sociais, foram determinantes na segunda-feira para dissuadir Bolsonaro da decisão de afastar o auxiliar.

O presidente do Congresso, senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), recuperado da covid-19, e o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, telefonaram para o ministro da Casa Civil, Walter Souza Braga Netto, advertindo-o das consequências políticas e dos riscos para os brasileiros da demissão no auge da crise do novo coronavírus.

O recado chegou a Bolsonaro por meio de Braga Netto e do ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos. Mas o Valor apurou que os ministros da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, e da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, reforçaram o coro. A demissão conturbaria mais o diálogo com o Congresso num momento sensível, como a conclusão da votação da chamada “PEC do Orçamento da guerra” e a prorrogação da CPMI das fake news, que tem o vereador Carlos Bolsonaro como alvo.

Ontem, horas após a ameaça pública de usar a caneta contra o ministro, Bolsonaro adotou uma postura discreta. Foi contido com os apoiadores na porta do Palácio da Alvorada, evitou a imprensa e cancelou a participação em dois eventos no Palácio do Planalto, um deles ao lado da primeira-dama, Michelle. No entanto, falando a um apoiador no Alvorada, sinalizou ter consciência da dimensão da crise provocada pela instabilidade de Mandetta no cargo.

Questionado por um popular se não assinaria o decreto para liberar o funcionamento do comércio no país, Bolsonaro disse que não responderia para não desestabilizar mais a conjuntura: “Você sabe o que está acontecendo na política?”

No fim da tarde, durante a entrevista coletiva diária no Palácio do Planalto para tratar da evolução da epidemia, o ministro-chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto, tergiversou ao ser questionado se o desligamento de Mandetta ainda estava em cogitação no governo. O general negou que a saída do ministro tenha sido pauta da reunião ministerial. “Está aqui o ministro Mandetta num relacionamento cordial com todos os ministros e a palavra de união que foi dita antes pelo próprio presidente do Banco Central, essa é a posi- ção do governo”, desconversou.

Em outra ponta, grupos bolsonaristas deflagraram um processo para tentar difamar o ministro nas redes sociais e desconstruir a imagem de competência que o tem mantido no cargo.

Bolsonaro também age para tornar desconfortável a situação de Mandetta, comandando reuniões diárias no Palácio sobre a covid-19 sem a participação do ministro. Além do ex-ministro Osmar Terra, em campanha para assumir a Pasta, a médica Nise Hitomi Yamaguchi, diretora do Instituto Avanços em Medicina, tornou-se onipresente nos encontros.

Por sugestão do presidente, Nise passou formalmente a integrar o comitê de crise liderado por Braga Netto para o combate à pandemia.

Cotada para o lugar de Mandetta, a médica é entusiasta do uso da hidroxicloroquina nos pacientes contaminados pelo vírus. Mandetta resiste a recomendar oficialmente a adoção da fórmula ponderando que o tratamento ainda é experimental, sem aval científico. (Com Daniel Gullino, de “O Globo”)