Valor econômico, v.20, n.4976, 07/04/2020. Brasil, p. A5

 

Comércio com China responde por quase 80% do superávit

Marta Watanabe

07/04/2020

 

 

As repercussões das declarações do ministro da Educação, Abraham Weintraub, em relação à covid-19 e à China vêm num momento em que as exportações e o superávit comercial brasileiro tornam-se mais dependentes do país asiático.

De janeiro a março deste ano o superávit do comércio bilateral com a China, maior destino das exportações brasileiras, atingiu US$ 4,33 bilhões, bem acima dos US$ 2,96 bilhões de igual período de 2019. Já o comércio bilateral com os Estados Unidos, segundo parceiro comercial do Brasil, resultou em déficit de US$ 2,73 bilhões no primeiro trimestre deste ano.

O superávit com a China de janeiro a março de 2020 perde na série histórica do comércio bilateral do período somente para o saldo positivo de US$ 5,53 bilhões obtido de janeiro a março de 2017. Naquele ano, porém, o saldo com os chineses equivalia a 38,4% do superávit total da balança brasileira. Este ano, o resultado positivo do primeiro trimestre com a China equivale a 77,9% do superávit total, segundo dados da Secretaria de Comércio Exterior (Secex/ME), ligada ao Ministério da Economia.

As exportações para a China atingiram 28,6% do total da exportação brasileira de janeiro a março, recorde da série histórica para o período. No ano passado a fatia foi de 25,8%. O avanço chinês acontece porque enquanto a exportação brasileira caiu 3,2% no primeiro trimestre, os embarques para o país asiático avançaram 7,4%. Ao mesmo tempo, as importações de bens made in China caíram 3,9% de janeiro a março enquanto as importações totais brasileiras cresceram 4,31%, sempre contra igual período do ano passado.

José Augusto de Castro, presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), pondera que parte do aumento da fatia de participação na China no superávit e na exportação no primeiro trimestre do ano se deve à antecipação nos embarques de soja em razão da perspectiva de redução de preços. De janeiro a março deste ano os embarques de soja, segundo a Secex, somaram 17,9 milhões de toneladas, contra 15,8 milhões em igual período do ano passado.

De qualquer forma, diz Castro, o que se espera é que o superávit comercial do Brasil encolha em relação a 2019 e que o resultado positivo com a China torne-se mais importante na formação do saldo em 2020. Isso deve acontecer porque a pauta exportadora do Brasil à China é composta por produtos menos elásticos à demanda, embora impactos de redução de preços sejam esperados. "E também porque, por questões estruturais, o Brasil não tem como substituir a China como principal destino das exportações no curto prazo."

Ao mesmo tempo, diz Welber Barral, sócio da consultoria Barral M Jorge e ex-secretário de comércio exterior, se espera redução das importações brasileiras como um todo este ano, dado o efeito da covid-19 na demanda doméstica. Isso afetará as importações de produtos vindos da China, que fornece ao Brasil sobretudo manufaturados, usados como insumos ou bens de consumo.

"Com a crise de demanda internacional intensificada pela covid-19, a exportação brasileira está mais dependente da China", diz Castro. Nesse sentido, diz ele, as recentes declarações do ministro Weintraub não ajudam. Isso, avalia, pode fazer com que o exportador de soja, por exemplo, perca mais ainda em preços, o que afeta o valor total embarcado pelo Brasil. "A crise cria uma situação em que o país precisa dançar conforme a música, e ainda estamos pisando no pé da dançarina."

Mario Carvalho, economista da Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior (Funcex), acredita que o episódio com o ministro criou "tensionamento desnecessário". Atualmente, diz ele, há intensa negociação de preços entre exportadores brasileiros e importadores chineses principalmente em razão da desvalorização cambial. O episódio, avalia, prejudica o exportador brasileiro, que tende a entrar já em desvantagem na negociação.

Barral receia que "declarações desastradas" tenham efeito mais amplo. "As relações políticas podem afetar não somente o comércio de curto prazo de soja, mas também a certificação na China de frigoríficos ou de produtores de leite. Até mesmo investimentos em infraestrutura podem sofrer impactos. Foram as boas relações entre China e Brasil no governo [de Michel] Temer, por exemplo, que contribuíram para maior abertura do mercado chinês para as carnes brasileiras", diz Barral.

No curto prazo, o que pode limitar impacto maior nas vendas brasileiras de soja à China é o fato de que os fornecedores atuais do grão são poucos: EUA, Brasil e Argentina. Esse último, explica, com produção bem menor. A perspectiva para a soja, lembra Barral, já era de possível perda de exportação em 2020, em razão da trégua no conflito comercial entre China e EUA, o que traria como consequência esperada o aumento de exportações de grãos americanos para o país asiático. A preocupação em relação à segurança alimentar divulgada no fim de semana pela China também faz sentido, diz ele, mas certamente esses efeitos poderão ser intensificados por questões políticas.

Em live divulgada no fim de semana, o ministro Weintraub causou polêmica ao dizer que considera alta a probabilidade de uma nova epidemia surgir na China, durante os próximos dez anos, porque os chineses comem "tudo o que o sol ilumina".

Barral pondera que um ponto positivo do governo Bolsonaro em relação à China é o fato de que o Brasil não impôs nenhuma restrição à entrada da Huawei, detentora de tecnologia 5G, apesar de pressões americanas. "O problema é que essa questão da Huawei é uma notícia com menos impacto na opinião pública geral do que uma declaração do ministro da Educação em live na rede social", avalia Barral.

"É preciso entender que o Brasil é uma economia importante em âmbito internacional e por isso declarações desastradas de autoridades e membros do governo brasileiro têm peso muito grande na imagem do país não somente com a China, mas com todo o mundo", diz o ex-secretário.

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Ministros tentam reverter mal-estar

Cristiano Zaia

Lu Aiko Otta

07/04/2020

 

 

Diante da sequência de críticas ofensivas à China por parte do governo e seu entorno, coube aos ministros Paulo Guedes (Economia) e Tereza Cristina (Agricultura) a tarefa de tentar reverter o mal-estar com Pequim e evitar futuras retaliações comerciais, que não são descartadas por fontes do governo.

Nos ministérios da Agricultura e da Economia declarações contrárias à China, como a feita nas redes sociais do ministro da Educação, Abraham Weintraub no último sábado, e do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), no dia 19, são classificadas de "desastre". Além de sustentarem o comércio exterior brasileiro num cenário de queda generalizada, as exportações para a China são vistas como ponta de lança para a recuperação econômica do Brasil.

Esses alertas têm sido feitos por Tereza Cristina e Guedes, mas a ministra tem sido mais veemente, por seu contato com o setor de agronegócios e com grupos políticos que foram importantes para a eleição do presidente Jair Bolsonaro. Ela chegou a ligar para o embaixador chinês em Brasília, Yang Wanming, após o filho do presidente ter insultado o país asiático. Na ocasião, segundo interlocutores, a ministra afirmou que Eduardo não tinha cargo no Executivo e por isso não representava o governo. "Isso é página virada", disse ela ao embaixador, que assumiu posto no fim de 2018 e tem se irritado com declarações contra seu país.

Mesmo decorridas duas semanas, fontes do governo relatam que, desde então, as relações com a China "azedaram". Por isso o alerta ligado do governo e a atenção redobrada dos dois ministros, num momento em que o setor exportador acreditava que a poeira havia baixado na tensão com a China.

Ainda assim, técnicos estimam ser possível que, no primeiro quadrimestre do ano, as exportações para a China ultrapassem o dobro da soma das vendas para os Estados Unidos e para a Argentina. O gigante asiático já é o principal destino das commodities agrícolas brasileiras, por exemplo.

Os dados do primeiro trimestre estão próximos disso. De janeiro a março, as vendas acumuladas para a China somam US$ 14,2 bilhões, enquanto as para os EUA chegaram a US$ 5,2 bilhões, e as para a Argentina, US$ 2,2 bilhões.

As variações do comércio mostram crescimento da importância da China como destino para exportações. No primeiro trimestre, as vendas para lá aumentaram 7,36%, enquanto para os Estados Unidos houve queda de 19,31% e, para a Argentina, recuo de 6,89%. No total, as exportações brasileiras somam US$ 49,5 bilhões, queda de 3,22%.

Só em março, quando medidas restritivas à atividade econômica se generalizaram, as vendas para a China avançaram 12,55%, ante recuo de 7,59% dos Estados Unidos e queda de 3,15% para a Argentina.

Ainda não há dados separados por país para abril. Mas a venda de alimentos segue forte. A média diária de exportação de produtos agropecuários cresceu 67,1% na comparação com a de abril de 2019. Também considerando a média por dia, as vendas de soja, principal produto importado pela China, aumentaram 80,2%.

As exportações de alimentos não só dão sustentação à balança comercial brasileira como também despontam como o passaporte para a recuperação da economia quando o pior da crise passar. Esta é a leitura que vem sendo feita internamente no governo.

Segundo a visão dos técnicos, o comércio mundial está em queda, mas não de forma homogênea. E as vendas de alimentos, como soja e carne, têm mostrado resiliência diante da crise.

A China, por haver entrado no "túnel" do coronavírus antes, já começa a retomar suas atividades. Uma retomada rápida elevará ainda mais a demanda e favorecerá países produtores de alimentos como o Brasil.

Ao despertar má vontade entre os chineses, o Brasil corre maior risco de ver prejudicadas suas exportações de maior valor agregado. Quanto mais específico é o produto, maior é a discricionariedade do importador em escolher seus fornecedores.

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Declarações tendem a deteriorar relações, dizem analistas

Hugo Passarelli

07/04/2020

 

 

As mais recentes ofensivas do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e do ministro da Educação, Abraham Weintraub, contra a China têm potencial de estender as rusgas diplomáticas entre o país asiático e o Brasil devido ao novo coronavírus.

Os especialistas divergem sobre as chances de o atrito respingar nas exportações agrícolas brasileiras e nos aportes chineses em projetos de infraestrutura no curto e médio prazos. Mas este é um cenário que ganha força, principalmente porque a disseminação da doença imprime fraqueza à economia mundial e, portanto, deve reduzir os fluxos financeiro e de comércio.

Eduardo e Weintraub usaram uma "live" no fim de semana para retomar temas populares ao bolsonarismo: a alegada culpa da China na crise mundial de saúde e uma suposta demora do governo asiático em comunicar as autoridades sanitárias do planeta sobre a gravidade do vírus.

O posicionamento representa um "tiro no pé incompreensível", opina Marcos Azambuja, diplomata de carreira e conselheiro emérito do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). O que chama atenção especial, diz, é o fato de a China, além de importante parceiro comercial do Brasil, ser hoje fornecedor de conhecimento e produtos para o combate ao novo coronavírus.

"Estamos em um caminho inexplicável de ofender a China e aos chineses, num momento em que o país adquire uma importância crescente para o mundo e para nós, sobretudo no fornecimento de equipamentos de saúde de emergência", afirma.

Segundo ele, é improvável que, no curto prazo, isso se reflita em queda das exportações agrícolas do Brasil. "Não vejo ainda um preço sendo pago, mas isso muda de um momento para o outro. Por ora, a racionalidade chinesa impede que eles adotem uma decisão mais brusca", diz.

Mas o sinal que fica, alerta Azambuja, é de cautela frente à dimensão que a insistência neste conflito pode tomar. "Meu medo é o efeito cumulativo da ofensa. O Brasil tem atirado com grande perfeição em seu próprio pé", afirma, destacando que a relação bilateral entre os dois países nunca demonstrou impasses. "Onde havia uma estrada fluida e limpa agora há um campo um pouco minado por causa das tolices ditas por nós", diz.

O professor de relações internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV) Matias Spektor diz que o atrito existe porque o governo chinês e toda sua diplomacia têm tentado rechaçar as críticas sobre a disseminação do doença e, ao mesmo tempo, o bolsonarismo buscar diminuir a gravidade da situação.

"É natural que essas duas estratégias, que são opostas, terminem gerando choques e fricção, afirma. "Mesmo na melhor das situações, a relação comercial entre Brasil e China enfrentaria um enorme desafio por causa da pandemia; agora, com estratégias políticas opostas, é uma combinação absolutamente explosiva", afirma Spektor.

Com o novo coronavírus se espalhando pelo país, a parceria de longa data com a China poderia servir para que os técnicos de saúde no Brasil buscassem apoio para replicar medidas de contenção da doença. "O Brasil deveria buscar com a sua relação trazer missões chinesas para nos ensinar o que fazer", diz Azambuja.

O diplomata também critica o alinhamento aos Estados Unidos como justificativa à postura belicosa com a China. "Os EUA têm uma grande rivalidade com a China porque o país está, de fato, fazendo uma série de movimentos que sugerem uma aspiração à condição de superpotência mundial. Para o Brasil, [seguir nesse caminho] é apenas uma grande burrice, não estamos nessa liga [de países desenvolvidos]", diz.

Embora tudo aponte para um afastamento gradativo da China, técnicos do governo brasileiro devem tentar reverter a impressão negativa, diz Guilherme Casarões, professor da FGV. "O Brasil não está em condições de dobrar a aposta e provavelmente trabalhará por reaproximação silenciosa. Ainda há muitos dentro do governo que entendem a importância da China para o avanço dos interesses brasileiros", afirma.