Valor econômico, v.20, n.4976, 07/04/2020. Legislação & Tributos, p. E2
Assembleias virtuais e Covid-19
João Pedro Barroso do Nascimento
07/04/2020
Com a Covid-19 (Coronavírus), a OMS e o Ministério da Saúde vêm recomendando que se evitem aglomerações para evitar a propagação do vírus. Medidas de isolamento social, quarentena e distanciamento vêm sendo adotadas. Paralelamente, esforços têm sido estabelecidos para manter a atividade econômica, conservar negócios e preservar a atividade produtiva no Brasil, que é fundamental para assegurar existência digna aos brasileiros (art. 170 da Constituição).
Editou-se recentemente a MP nº 931/2020 dilatando, excepcionalmente, os prazos para realização de AGOs e/ou reuniões de sócios em companhias e sociedades limitadas.
O tema é importante e expõe a necessidade de modernização do regime assemblear no Brasil. A questão não é nova, mas ganha importância no contexto da pandemia. Nos últimos anos, ocorreram transformações importantes nas assembleias e no direito de voto, no Brasil e no mundo. É cada vez mais frequente a adoção de tecnologias e sistemas de votação a distância e participação remota.
A Lei nº 6.404/76 (LSA) foi modificada pela Lei nº 12.431/11, que (i) legitimou, nas companhias abertas, a possibilidade de participação e voto a distância (art. 121, § único, LSA); e (ii) estabeleceu que deve ser considerado presente em assembleia o acionista que registrar a sua presença a distância (art. 127, § único, LSA). As regulações da CVM têm sido revistas, especialmente a Instrução CVM nº 481/2009.
Todavia, até o momento, a lei brasileira faculta a participação e voto a distância apenas nas companhias abertas, que são pequena parte das sociedades brasileiras. Para que o uso do sistema de voto e participação remota seja abrangente, é necessário que este possa ocorrer em companhias fechadas e sociedades limitadas.
Atendendo à demanda, foram recentemente apresentados projetos de lei no Senado Federal, que visam a permitir a votação e participação a distância, pela internet, em companhias fechadas e sociedades limitadas. Na esteira da modernização, alguns países têm admitido encontros não presenciais, nos quais a interação entre os participantes é realizada apenas remotamente.
A adoção de tecnologias nas assembleias gerais é bem-vinda e deve ser feita para ampliar horizontes, sem limitar o exercício de direitos. Somos contrários à redução das assembleias a encontros exclusivamente virtuais onde não há debates e discussões e/ou exista limitações de interação entre participantes.
Em 2000, o Estado de Delaware, que hospeda a maioria das companhias americanas, sancionou legislação local, que, desde então, autoriza a realização de assembleia geral valendo-se, apenas e tão somente, de meios eletrônicos e comunicação remota, em substituição ao ambiente físico e aos padrões tradicionais.
A partir de tal ocasião, inúmeros outros Estados americanos e diferentes países passaram a refletir sobre o tema. A legislação nacional americana (Model Business Corporation Act) foi adequada, a fim de prever elementos de tecnologia nas assembleias (cf. §§7.01 a 7.09 da referida lei).
Em 2003, na Europa, iniciaram-se reflexões para reforçar direitos dos acionistas de companhias abertas na votação em companhias de outros países da União Europeia. Criou-se, em 2007, a Diretiva nº 2007/36/CE prevendo o uso de tecnologias para aprimorar procedimentos de votação em assembleias gerais.
Respeitadas as características de cada país e de seus mercados de capitais, o mundo está atento às transformações das tecnologias nas assembleias gerais. O tema é polêmico, sobretudo, em assembleias apenas virtuais. Aquilo que deveria ser avanço e modernismo, pode se revelar retrocesso e atraso, como já ocorreu em locais que adotaram a assembleia exclusivamente virtual.
Sabemos que a evolução tecnológica aprimorou comunicações e fluxo de informação, mas ainda há desafios importantes a serem superados. É necessário, por exemplo, (i) garantir tecnologias capazes de assegurar que todos possam ouvir e ser ouvidos com clareza; e (ii) prover mecanismos de autenticação, seja por biometria digital, reconhecimento facial ou identificação de retina, para verificar a identidade e a legitimidade de participação dos acionistas e/ou de seus representantes.
Em muitos casos, para coordenar a participação virtual, há restrições prevendo formulação de perguntas e respostas (Q&A), que reduzem a pessoalidade e a interação, substituindo diálogo sensorial por comunicação textual e remota. As interações e reações não verbais (body language) típicas do encontro cara-a-cara são reduzidas. É difícil replicar tal interação no formato eletrônico.
Alguns dizem que, inclusive, tal medida é capaz de criar espaço para abusos de controladores e administradores, uma vez que o formato puramente virtual os permite ignorar questões complexas, difíceis e/ou polêmicas, fazendo triagem e concentrando-se apenas em questões positivas e favoráveis.
Por conta da Covid-19, o ano de 2020 certamente proporcionará lições e aprendizados. É hora de utilizar a tecnologia disponível e ressignificar métodos obsoletos, como os livros societários da LSA, que até hoje são escriturados “à mão”, mesmo diante de tecnologias como o blockchain para tal finalidade. Os aplicadores do Direito devem estar de braços abertos para as novidades que virão.