Valor econômico, v.20, n.4975, 04/04/2020. Política, p. A8

 

Declarações de Bolsonaro preocupam STF

Isadora Peron

Luísa Martins

Beatriz Olivon

04/04/2020

 

 

Os embates que o presidente tem travado com o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, também têm incomodado os ministros. “Ele está criticando medidas do próprio governo. O que ele é a essa altura? Líder da oposição ao governo dele? A rigor, ele virou um outsider no seu próprio governo”, diz o magistrado.

Outro ministro afirma que, hoje, Bolsonaro é “voz isolada quanto à retomada da normalidade”. Ele, porém, diz acreditar que o presidente não editará o decreto. “Eu não presumo que ele baixe qualquer ato contrariando o que está sendo preconizado a uma só voz praticamente.”

Juristas ouvidos pela reportagem afirmam que, do ponto de vista jurídico, o presidente não poderia obrigar a abertura do comércio por decreto. Há alguns direitos em choque, o direito individual de propriedade, à saúde pública e, portanto, à vida das pessoas, segundo Flávio de Leão Bastos, professor de direito constitucional da Universidade Mackenzie.

O artigo 5º da Constituição estabelece que, individualmente, qualquer cidadão só é obrigado a fazer algo em virtude de lei conforme o princípio da legalidade. Há também a definição de que a propriedade é um direito fundamental e cumpre uma função social. “O não funcionamento do comércio agora se deve pela tentativa de preservar a saúde das pessoas, com base na ciência. O presidente obrigar o indivíduo a trabalhar na empresa dele seria uma indevida interferência do Estado, que deveria zelar pela saúde e vida das pessoas”, diz.

Nas últimas semanas, não faltaram decisões - e recados - de ministros do Supremo de que a Corte não irá se omitir em relação às “canetadas” que o presidente tem dado em meio à crise.

O ministro Luís Roberto Barroso, por exemplo, proibiu o governo de fazer qualquer campanha publicitária que contrarie as determinações da Organização Mundial da Saúde (OMS) em relação ao isolamento.

Já o ministro Alexandre de Moraes, a pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), deu 48 horas para Bolsonaro prestar informações sobre as medidas que vem adotando para combater o avanço da doença no país.

Também não passou despercebido o fato de o ministro Marco Aurélio Mello ter enviado à Procuradoria-Geral da República (PGR) um pedido de afastamento do presidente, que ele poderia ter arquivado.

Na prática, os despachos dos dois ministros são procedimentos meramente processuais, mas, em momentos de crise, servem como “aviso” de que o Poder Judiciário está atento aos movimentos do Executivo.

Por outro lado, os ministros têm se mostrado sensíveis ao impacto que o isolamento social vai trazer para a economia. Moraes, por exemplo, autorizou o governo federal a descumprir regras previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para realizar despesas não previstas com ações de combate ao coronavírus.

Marco Aurélio negou o pedido de partidos para suspender as medidas provisórias que flexibilizaram as regras trabalhistas durante o período de enfrentamento da doença.

Toffoli tem adotado um discurso pró-isolamento, mas sempre demonstrando preocupação com o impacto na economia. Na sexta-feira, sugeriu uma saída “diagonal”, isto é, retomar a atividade econômica aos poucos, com o estabelecimento de uma série de critérios. O termo foi uma brincadeira sobre o embate entre o isolamento vertical, defendido por Bolsonaro, e horizontal, adotado pela maioria dos países até agora.

É de Toffoli também a avaliação de que o STF tem funcionado como uma espécie de “Poder Moderador” em meio à pandemia.

Na próxima semana, depois de quase um mês sem a realização de sessões plenárias, os ministros voltarão a se reunir, pela primeira vez, por meio de videoconferência. Na pauta, estão previstas liminares concedidas por ministros em meio à crise. O debate que será travado servirá de termômetro para saber como o conjunto dos 11 ministros tem visto as medidas que vêm sendo adotadas pelo governo. Aos poucos, eles começarão a consolidar uma jurisprudência sobre a pandemia, já que, até agora, as decisões têm sido monocráticas. 

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Discreto, Braga Netto atua como bombeiro e gestor

Andrea Jubé

Fabio Murakawa

04/04/2020

 

 

Uma característica da personalidade do presidente Jair Bolsonaro é a desconfiança obsessiva, ao ponto de afirmar que pessoas de seu entorno lhe enfiaram uma “faca no pescoço” dentro do gabinete presidencial. É nesse contexto que o ministro-chefe da Casa Civil, general Walter Souza Braga Netto, desponta como um dos personagens que Bolsonaro ainda considera insuspeito e a quem ouve atentamente em meio à escalada da crise do coronavírus.

O ministro da Casa Civil não é o “presidente operacional do Brasil”, definição dada por um site comandado por militares da reserva que ecoou na mídia internacional no fim de semana. Mas é ele quem está de fato conduzindo o país no combate à pandemia. Na definição de um auxiliar, Bolsonaro “tem a caneta e a retórica”, mas delegou a Braga Netto a tomada de decisões de governo.

Braga Netto foi uma escolha pessoal de Bolsonaro para rearticular a Casa Civil, esfacelada após a gestão Onyx Lorenzoni. Embora tenha contado com o entusiasmado endosso dos outros generais palacianos: Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), foi de Bolsonaro a ideia de trazê-lo para o governo a partir de sua experiência na intervenção no Rio.

Há dois anos, quando assumiu o cargo de interventor da área de segurança pública do Rio de Janeiro, Braga Netto confidenciou aos amigos que era a missão mais difícil de seus 40 anos de Exército - uma trajetória que já lhe havia rendido 23 condecorações nacionais e quatro internacionais.

Agora o general já admitiu aos mais íntimos que o combate à pandemia da covid-19 é uma batalha ainda mais desafiadora.

Há dois anos ele comandava um efetivo de 71.954 policiais civis, militares, agentes penitenciários e bombeiros. Agora ele se equilibra entre a coordenação de 21 ministérios e o papel de anteparo no embate interno entre Bolsonaro e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.

Braga Netto atuou como bombeiro na última semana, depois que Bolsonaro criticou abertamente o ministro da Saúde em uma entrevista à rádio Jovem Pan. O Valor apurou que ele telefonou para Mandetta na sexta-feira, dia seguinte à entrevista, para tranquilizá-lo e continuar com fazendo seu trabalho.

Horas após o telefonema, Mandetta apareceu tranquilo na entrevista coletiva diária no Planalto e disse, sobre a possibilidade de pedir demissão, que “um médico não abandona o paciente.”

Nas palavras de um de seus assessores na Casa Civil, Braga Netto tem atuado como um amortecedor na disputa entre Bolsonaro e Mandetta, tentando absorver e atenuar os atritos entre ambos.

Segundo interlocutores, Braga Netto tem uma visão mais moderada do que a de Bolsonaro. Porém, também tem a visão de que Mandetta “extrapolou” na maneira com que expôs discordâncias com o presidente. Assim como outros militares na Esplanada, o ministro da Casa Civil tem uma visão de hierarquia. Crê que seu papel não é tutelar Bolsonaro, por conta de suas declarações polêmicas, mas protegê-lo do próprio comportamento errático.

Um oficial do Exército que se aproximou de Braga Netto durante a intervenção no Rio afirma que, dos três generais do Palácio do Planalto, Braga Netto é a quem Bolsonaro mais ouve.

“Braga Netto é o único que consegue baixar um pouco a bola do Bolsonaro”, diz este oficial. Ele observa que no quadro atual, os generais Augusto Heleno e Luiz Eduardo Ramos estariam menos influentes. No Planalto, outras fontes afirmam que Ramos e o ministro Jorge Oliveira seguem no círculo mais próximo do presidente.

Heleno era apontado como o “guru” do governo no início da gestão, mas ao tentar administrar tantas crises, inclusive interpondo-se entre os filhos do presidente, perdeu fôlego.

Ramos chegou com disposição e alinhou-se ao secretário de Comunicação, Fábio Wajngarten, da ala ideológica. Foi chamuscado no frustrado acordo com o Congresso sobre as emendas parlamentares, e agora reergueu-se em uma afinada parceria com Braga Netto.

A escolha de Braga Netto também contribui para a relação institucional com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Ambos se aproximaram durante a intervenção no Rio de Janeiro.

Ao Valor, Maia confirmou que é um “admirador do ministro”. Mas a interlocução institucional tem sido feita com o ministro Luiz Eduardo Ramos, responsável pela articulação parlamentar.

A dupla Braga Netto e Ramos tem tocado de ouvido. Ambos atuaram juntos no Rio de Janeiro em 2016 na organização dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos. Os dois convenceram Bolsonaro a adotar um tom moderado no pronunciamento sobre os desdobramentos da pandemia na terça-feira, em contraste com a fala inflamda da semana anterior.

Um dia depois, entretanto, sob a influência do chamado “gabinete do ódio”, ligado ao vereador Carlos Bolsonaro (PRB-RJ), o presidente já havia voltado à carga contra os governadores e a política de isolamento social.

Partiu de Braga Netto e Ramos a estratégia de levar as entrevistas coletivas sobre a pandemia para o Palácio do Planalto no esforço de passar a imagem de unidade na comunicação institucional do governo. Ao mesmo tempo, diluiu o protagonismo de Mandetta, que vinha incomodando Bolsonaro, já que ele passou a dividir os holofotes com outros ministros de diversas outras áreas que também estão em campo contra o vírus.

Segundo relatos, Braga Netto, avesso aos holofotes, não queria conduzir as entrevistas. Foi convencido por Ramos e hoje se sente confortável na tarefa.

Há menos de dois meses despachando na Casa Civil, ele montou um gabinete enxuto, com pessoas de sua confiança. Aos 62 anos, mineiro de Belo Horizonte, ele ingressou no Exército em 1975 na Academia Brasileira das Agulhas Negras (Aman). Depois tornou-se doutor em estratégia e alta administração pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, e concluiu pós-graduações na Fundação Getulio Vargas e na Escola Nacional de Administração Pública (Enap).

“Braga Netto é de trato afável, muito organizado mentalmente, cartesiano, tem ótimo jogo de cintura, e sabe antecipar cenários”, descreve este general da ativa, ligado ao ministro. É discreto e dedicado à família.

Essa qualidade ele já admitiu em uma conversa rápida com o Valor, no refeitório do Planalto: “Meu perfil é de gestão, abaixar a cabeça e trabalhar”. O diálogo deu-se em uma das incursões do general ao restaurante dos servidores, onde almoçava diariamente. Na quarentena, o local está fechado, servindo apenas as marmitas individuais. O ministro vai pessoalmente buscar a dele, em vez de enviar um emissário que lhe poderia levar o almoço.