Valor econômico, v.20, n.4974, 03/04/2020. Legislação & Tributos, p. A14

 

Crise, moratória e recuperação de empresas

Marcelo Guedes Nunes

03/04/2020

 

 

A quarentena e a recessão econômica advindas da pandemia do coronavírus impactarão a economia de forma profunda. A superação desse hiato na produção econômica e a resolução do enorme descasamento entre obrigações e pagamentos dependerá da estratégia política adotada pelo governo.

As medidas, no entanto, devem ser desenhadas com cuidado para que o remédio, pelo excesso da dose, não se torne um veneno. O esforço deve se dirigir para estimular a economia a não parar. Diante do encolhimento brutal dos caixas das empresas, as medidas devem ser voltadas para recompor esse caixa e incluem liberação de linhas de crédito emergenciais e planos de aceleração de pagamentos, que evitem a judicialização dessas discussões.

Medidas como alargamento das hipóteses de recuperação judicial, facilitação de ações revisionais com liminares e outras providências de suspensão de pagamentos serão um tiro no pé.

Temos de lembrar o óbvio: os credores das empresas são também outras empresas. Se todos pararem de pagar ninguém recebe e a crise se protrai no tempo. Falta de caixa é fato, mas o não pagamento a agrava ainda mais, porque outros deixam de receber.

Se essas questões se judicializarem, todos serão ao mesmo tempo réus e autores de ações revisionais, devedores e credores em recuperações judiciais, numa grande ciranda jurídica.

Mas o que fazer?

A Lei de Recuperação Judicial e Falências foi adotada com entusiasmo pelo empresariado, que a partir da recessão de 2008 até hoje aprendeu a utilizar os seus mecanismos de renegociação coletiva. No entanto, estudos apontam que a recuperação judicial funciona para empresários de médio e grande porte, sendo muito pouco utilizada pelos micro e pequenos, justamente aqueles que são diretamente atingidos pelos ciclos recessivos.

Segundo dados do Sebrae, no Brasil existiam 6,4 milhões de estabelecimentos empresariais em 2017. Desse total, 99% são micro e pequenos, definidos como empresas com faturamento bruto anual de até R$ 4,8 milhões.

Essas empresas respondem por 52% dos empregos com carteira assinada no setor privado (16,1 milhões). Ainda de acordo com o Portal do Empreendedor, no Brasil existem 3,7 milhões de empresários individuais.

A despeito de serem 99% das empresas, os empresários individuais, pequenos e micro raramente fazem uso de recuperações judiciais. Pesquisa da Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ) sobre o Estado de São Paulo mostra a que essas categorias respondem por apenas 20,4% das recuperações. Mesmo o procedimento especial previsto na lei é muito pouco utilizado. A pesquisa mostrou que entre janeiro de 2010 e junho de 2017 ele foi utilizado no Estado inteiro apenas sete vezes (de um total de 906 casos analisados). Um retumbante fracasso.

Se a recuperação judicial é um remédio para ser aplicado em crises econômicas e 99% das empresas são pequenas e micro, seria esperado que elas aparecessem na liderança do seu uso. Isso não ocorre provavelmente porque o processo é complexo e caro demais. É como se um tornado atingisse uma baía, fazendo com que os barcos pequenos virassem primeiro, mas os indicadores mostrassem que a guarda costeira resgata apenas embarcações médias e transatlânticos, deixando os pescadores locais e pequenas embarcações à sua própria sorte.

E como seria esse programa? Há muito o que se discutir, mas as premissas são as seguintes: não pode haver uma suspensão ou moratória sem contrapartidas. Os empresários devem ser incentivados a retomar pagamentos através de descontos escalonados e preestabelecidos: quanto mais rápido paga, maior o desconto; deve se dirigir prioritariamente aos empresários individuais, pequenos e micro; deve acontecer fora do Poder Judiciário.

Lembre-se aqui que esse mesmo estudo da ABJ indica que o “stay period” mediano de uma recuperação judicial é de 360 dias, sem contar uma carência de dois anos para começar o pagamento. Pior: os planos são aprovados com descontos de até 80% e prazos de pagamento que chegam a 20 anos.

As recuperações são verdadeiras remissões de dívida. Se optarmos por essa via, a economia para por três anos, os pagamentos serão irrisórios e a perder de vista. As ações revisionais terão a mesma sorte: quatro anos até um julgamento definitivo, com alta probabilidade de uma severa redução ou não pagamento. E no curso dessa via crucis jurídica muitos irão falir.

A conclusão é inexorável. Caso optemos pela via judicial, os caixas não serão recompostos e os pagamentos serão inviabilizados. E caso o manejo dessas ações se generalize, como propugnam alguns, os efeitos da crise se estenderão por meia década e implicarão no estrangulamento da economia brasileira, não na sua salvação.

Temos, portanto, de evitar perseguir soluções que se baseiem apenas em alterações na Lei de Falências, na linha do que propõem alguns projetos de lei. Esse é um beco sem saída. A solução deve acontecer fora da Justiça e apenas marginalmente através de ações judiciais. O Estado deve atuar de forma cirúrgica e por prazo curto, dando um forte e rápido empurrão (nudging) para que o carro da economia pegue no tranco e as engrenagens do mercado voltem a girar.