Correio braziliense, n. 20799 , 03/05/2020. Brasil, p.6

 

Tentativa de evitar genocídio indígena

Luiz Calcagno

03/05/2020

 

 

Sebastião Salgado reivindica das autoridades brasileiras medidas urgentes para impedir uma catástrofe dos povos originários. Manifesto é assinado por personalidades mundiais, como Paul McCartney, Almodóvar e Príncipe Albert II, de Mônaco

Em 1987, um surto de gripe levado por missionários quase exterminou a etnia dos zoés, um dos poucos povos indígenas isolados do Brasil. Segundo integrantes das tribos relataram à época, os indivíduos começavam a sofrer doenças pulmonares após os breves encontros com o grupo que pretendia pacificar os Zoés. Em 1816, em Caxias (MA), conforme contou o antropólogo Darcy Ribeiro em seu livro Os Índios e a Civilização, fazendeiros atraíram os índios Timbira para uma vila que sofria epidemia de varíola, com o intento de exterminá-los. No século 21, o coronavírus traz de volta o medo do extermínio biológico dos povos originários. O medo é de que invasores, em sua maioria garimpeiros, grileiros e madeireiros, levem a doença para dentro das aldeias, dizimando populações.

Esses grupos não respeitam o isolamento e, segundo algumas lideranças, estão aproveitando o período de quarentena para intensificar as invasões. Para fazer com que a Presidência da República, o Judiciário e o Congresso reajam para conter o avanço nos territórios indígenas, o fotógrafo Sebastião Salgado e a mulher, Lélia Wanick Salgado, escreveram um manifesto subscrito por artistas e autoridades brasileiras e internacionais. O documento conta com a assinatura de nomes como os músicos Chico Buarque e Paul McCartney; de cineastas como o espanhol Pedro Almodóvar e o mexicano Alejandro González Iñarritu; o Príncipe Albert II de Mônaco; o apresentador Luciano Huck; a atriz e apresentadora americana Oprah Winfrey; a atriz francesa Juliette Binoche, dentre outros.

Ao Correio, de Paris, Sebastião Salgado falou do temor do desaparecimento dos povos originários. “Tentamos chamar a atenção da presidente da República, do Judiciário, Legislativo, para liberar o território indígena dos invasores. Temos um risco real do desaparecimento da comunidade indígena. É do conhecimento do governo o problema. É de conhecimento do governo que desmontou os filtros de penetração nesses territórios que são protegidos pela Constituição Federal. É de conhecimento que o coronavírus pode exterminar grande parcela dessa população. É um genocídio, uma morte anunciada. E se as autoridades não tomarem uma posição, o Brasil passará a ser o responsável pela tragédia”, alertou.

Sebastião Salgado, conhecido mundialmente pelos registros fotográficos desses povos, destaca que antes de entrar em uma aldeia, sempre era obrigado a ficar em quarentena. Ele destaca que o risco sofrido pelos indígenas é consenso entre as várias organizações criadas pelos povos originários. “As pessoas que assinaram a lista, que é significativa, todas têm uma preocupação muito grande com o que está acontecendo. É uma preocupação humanitária. As pessoas têm consciência do que está ocorrendo. As organizações indígenas estão pedindo socorro. Estão reunidas, e nunca houve tanta invasão em territórios indígenas e nem tanto consenso dentro das comunidades indígenas sobre o perigo”, afirmou o fotógrafo. “Eu gostaria que as autoridades tomassem a responsabilidade de criar uma força tarefa para desobstruir o território indígena dos invasores. Que respeitem a Constituição. A lei tem que ser aplicada. É preciso um mandado para permitir que o Exército entre nessas regiões e salve esses povos”, ressaltou.

Denúncia

O texto escrito por Sebastião e Lélia Salgado alerta para a grave ameaça à sobrevivência dos indígenas por conta da pandemia e lembra o passado desses povos. A mensagem também denuncia o aumento das invasões por garimpeiros, madeireiros e grileiros, principalmente. “Essas operações ilícitas se aceleraram nas últimas semanas, porque as autoridades brasileiras responsáveis pelo resguardo dessas áreas foram imobilizadas pela pandemia”, diz o texto.

Por meio de nota, a Fundação Nacional do Índio (Funai) afirma compreender “a necessidade de que pessoas estranhas à comunidade não permaneçam em Terras Indígenas, sobretudo neste momento em que se faz necessário o isolamento social frente à pandemia do novo coronavírus”. “Nesse sentido, a Fundação vem atuando na vigilância, fiscalização e monitoramento dos territórios indígenas, por meio de suas unidades descentralizadas, e em parceria junto a órgãos governamentais, ambientais e de segurança pública, no sentido de articular e fortalecer ações conjuntas de proteção e fiscalização nas áreas pertencentes aos povos tradicionais”, justifica o órgão.

Ainda de acordo com o texto, a Funai “também identificou áreas que devem ser priorizadas pelas ações de proteção territorial no âmbito das medidas de contenção do contágio do novo coronavírus”. “Tal situação decorre do fato de que historicamente as frentes de ilícitos ambientais/territoriais constituem frentes de contágio e disseminação de epidemias entre populações indígenas. Assim, já foram definidas estratégias para articulação interinstitucional com os entes responsáveis pelas forças de segurança pública, visando atuação prioritária nessas Terras Indígenas”, afirma o órgão.

______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Em uma semana, 40% das mortes registradas

Sarah Teófilo

03/05/2020

 

 

Do total de mortes por Covid-19 no Brasil, 40,5% foram registradas só na última semana. Até ontem, 6.750 pessoas haviam morrido em decorrência da doença, causada pelo novo coronavírus. No sábado anterior, dia 25 de abril, eram 4.016 óbitos – o que significa, também, um aumento de 68% de mortes em sete dias. Em relação ao número de casos confirmados, o país chegou ontem a 96.559. No sábado passado, eram 58.509 – ou seja, um aumento de 65%. A taxa de letalidade do vírus no Brasil chegou a 7%, o que representa 7 mortes a cada 100 infectados (daqueles casos que são confirmados, sem levar em conta assintomáticos, por exemplo).

Até o fechamento desta edição, o ministro da Saúde, Nelson Teich, não publicou nenhuma manifestação sobre o número de casos e mortes no país. Teich fez duas postagens nas redes sociais sobre precauções a serem tomadas ao sair de casa e como cada um deve cuidar de sua máscara. Por volta das 20 horas, disse que irá para Manaus (AM) hoje “para acompanhar de perto a situação do atendimento à população do Amazonas”. “Estamos juntos no combate à Covid-19, com o governo do Estado e do município”, escreveu.

Foram confirmados 421 óbitos em decorrência da doença em 24 horas, de sexta para sábado. No dia anterior, o número de mortes diariamente foi de 428. Ontem foi o quinto dia consecutivo em que o país confirmou mais de 400 mortes em 24 horas. Na terça (28/4), foram 474 óbitos em 24 horas, um recorde no Brasil. Naquele mesmo dia, a quantidade de óbitos chegou a 5.017, ultrapassando os números da China, primeiro país com registros do vírus e onde houve 4.643 óbitos confirmados pela Covid-19. Na ocasião, o presidente Jair Bolsonaro foi questionado sobre os dados, e respondeu: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre.”

Os cinco estados com mais casos e óbitos são São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Pernambuco e Amazonas. Juntos, eles concentram 81,8% dos óbitos e 66,5% dos casos. São Paulo, epicentro do vírus no Brasil, possui 31.174 casos e 2.586 mortes confirmadas. O estado do Sudeste teve um aumento de 55,1% mortes confirmadas em uma semana, percentual um pouco menor do que o crescimento nacional no período.

___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

"Está claro que não somos prioridade"

Luiz Calcagno

03/05/2020

 

 

Apesar do que afirma a Funai, a vigilância não parece tão eficaz. É o que afirma Kleber Karipuna, liderança da etnia karipuna e integrante da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). “Aumentaram bastante as invasões nas terras indígenas. Enquanto os povos estavam se isolando e tomando precauções, madeireiros, garimpeiros, grileiros, continuaram as invasões. Todo o trabalho de proteção e vigilância dos territórios, que foi paralisada, abriu as portas para esse aumento de invasões. Temos muitos relatos. Com certeza, a ida desses invasores aos territórios indígenas, sem nenhum cuidado, causa a proliferação do vírus”, denuncia.

As invasões que se intensificaram não são novas. Antes da crise da pandemia, o território Yanomami, destaca Kléber, já contava com mais de 20 mil garimpeiros. “O modo de vida desses povos em território, proximidade, convívio familiar muito próximo, além de sistema imunológico fragilizado, facilita a disseminação de um contágio em massa, que pode chegar a dizimar comunidades inteiras, como vimos em um passado não muito distante, quando uma gripe levada por missionários dizimou grande parte do povo Zoés”, explica.

“O atual governo não se preocupa nem um pouco com a saúde e proteção dos povos indígenas. Para a gente, está claro que não somos prioridade, mas, sim, os territórios. Prioridade para invasão, abertura do agronegócio, garimpo e mineração. O que a gente entende é que a chegada de um vírus desse em uma comunidade (indígena) vai ser como uma vitória para o governo, dentro de um contexto de exploração e retrocesso de direitos que o governo já vem fazendo contra a população indígena desde que assumiu em janeiro de 2019”, desabafa.

O secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira, concorda com o manifesto e com o posicionamento de Kleber Karipuna. Segundo ele, sem ajuda do governo, foram os próprios povos que decidiram se isolar. “Os povos indígenas, no início da chegada do coronavírus, tomaram a iniciativa de fechar os territórios. Não houve iniciativa dos órgãos públicos federais, principalmente da Funai, de tomar esse procedimento. Madeireiros, garimpeiros e grileiros não fazem quarentena”, ressalta.

De acordo com o indigenista, existem relatos de invasões nos territórios dos Aripuanã em Mato Grosso; Yanomami, em Roraima; Pataxó, no sul da Bahia; Guarani, no Mato Grosso do Sul; e Guajajara, no Maranhão. “Essas invasões aconteceram no período de pandemia. Essa situação é mais visível no Amazonas, onde já existem 11 mortos (por coronavírus). Com certeza, o vírus está sendo levado por não indígenas, e isso tem colocado uma preocupação especial sobre aquele estado, pois as condições de saúde lá são precárias, e o acesso às comunidades é difícil. Se não forem tomadas providências imediatas, vai ser uma tragédia com relação às comunidades indígenas, pois sobre o povo do Amazonas, a tragédia já está instalada”, avisa.