O globo, n. 31656, 08/04/2020. Especial Coronavírus, p. 8

 

Entrevista - Ronaldo Damião: "Quando salvamos alguém, é uma alegria"

Ana Lucia Azevedo

08/04/2020

 

 

Ronaldo Damião / MÉDICO Diretor do Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Uerj, diz ter esperança, apesar de a Covid-19 ser ‘pior do que todas as outras pestes que já enfrentamos’

Diretor do Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Ronaldo Damião afirma que cada paciente com Covid-19 que deixa a UTI e vai para a enfermaria é celebrado com alegria pelos profissionais de saúde. Na linha de frente no combate ao novo coronavírus, o Pedro Ernesto recebe casos graves e muito graves. Seus médicos e enfermeiros têm visto todos os dias o rosto da morte por Sars-Cov-2. “Cerca de 80% dos pacientes com coronavírus internados na UTI do hospital morrem”, diz Damião. “Vivemos das pequenas alegrias, dos pacientes que se recuperam. São nosso estímulo.”

Como está a situação no Pedro Ernesto?

É desesperadora porque a taxa de mortalidade é extremamente elevada nos pacientes que vão para a unidade de tratamento intensivo. Ela chega a 80% das pessoas com Covid-19. E pense que 10% dos doentes com coronavírus vão para a UTI. Por isso essa doença é pior do que todas as outras pestes que já enfrentamos. Ela é brutal. Você sabe que há grande risco de 80% das pessoas que entram na UTI saírem de lá mortas. Mas temos esperanças.

Quais?

Quando conseguimos salvar alguém, quando um paciente sai da UTI e vai para a enfermaria, para todos nós é uma alegria. Cada caso desses para a equipe é um estímulo para prosseguir, para enfrentar esses dias que nos parecem tão escuros. Sabemos que vai piorar, não temos qualquer expectativa diferente disso. Tem sido muito difícil para todos nós da área de saúde, para as nossas famílias.

Como estão as equipes no hospital?

Há um estresse enorme no hospital, porque há também uma pandemia de pânico. Estou aqui desde a década de 1970 e nunca vi tanta angústia, tanto medo.

Mas também, em meio a tudo isso, há muita dedicação.

Por que os casos se agravam tanto?

Tudo nessa doença é uma surpresa. Por exemplo, ela afeta os rins de uma forma espantosa. Entre 20% e 25% dos pacientes graves, em UTI, desenvolvem insuficiência renal e precisam de diálise. É um agravante terrível. Por que acontece? Não sabemos. Pode ser o ataque direto do vírus, a inflamação desencadeada por ele, as duas coisas. É muito desesperador. O paciente começa com um quadro respiratório grave e a doença começa a se espalhar, todo o corpo começa a sofrer.

Como o Pedro Ernesto se organizou?

Mudamos completamente o hospital. Atendemos casos de média e alta complexidade de uma gama enorme de doenças, e essas doenças não acabaram. Mas suspendemos tudo o que era eletivo e só mantivemos os procedimentos para câncer e emergências cardíacas.

Quantos leitos de UTI vocês têm atualmente?

Temos 70 leitos de UTI, mas todos já estavam ocupados com pacientes que não tinham Covid-19. Conseguimos remanejar outros leitos e adaptar uma parte para UTI. Hoje temos 30 leitos de UTI para pessoas com o novo coronavírus e outros 30 para casos de média gravidade da doença. Mas esperamos ter 140 leitos para pacientes com Covid-19. Destes, 70 serão de UTI. Leitos para essa pandemia são mais complicados porque precisam ser totalmente isolados. Estão também numa área isolada do hospital, para reduzir ao máximo qualquer contato.

E o atendimento?

Todo o atendimento é altamente complexo. O pessoal que trabalha nas UTIs fica isolado. Se um profissional precisa ir ao banheiro ou comer, tem que trocar todo o EPI. Além de precisarmos de uma quantidade imensa desses equipamentos, existe a questão da capacitação. A maioria dos profissionais precisa de treinamento para usá-los. E, no caso dos respiradores, da intubação, a mesma coisa. A maioria dos médicos precisa aprender a fazer isso. Precisamos contratar intensivistas. Os anestesistas é que têm feito muitas das intubações.

Quantos pacientes com coronavírus o hospital tem?

Na segunda-feira desta semana, eram 38 pacientes com Covid-19, todos graves porque só recebemos doentes de maior complexidade, trazidos de outros hospitais. Conseguimos liberar um leito de UTI porque infelizmente um paciente morreu.

E a demanda por atendimento?

Nossa expectativa é de grande aumento. Antes a doença estava nos hospitais privados, ela entrou com as classes mais favorecidas no país. Mas agora chegou ao SUS, às comunidades. E está se expandindo. O problema é que o número de pacientes não para de aumentar e faltam equipamentos de proteção pessoal, faltam respiradores.

O hospital tem conseguido mais respiradores?

Compramos 50 respiradores da China, que deveriam chegar no fim deste mês, mas não temos garantias. Ontem, consegui receber dez respiradores que tínhamos comprado porque recorremos à Justiça. E há a ganância dos vendedores.

Como assim?

Está muito difícil comprar equipamentos. Os vendedores, as empresas brasileiras que representam as chinesas, aumentaram demais os valores. O preço das máscaras N95 subiu de R$ 4 para R$ 23. Os respiradores passaram de uma faixa de R$ 40 mil para R$ 100 mil. E não temos garantia de que os produtos serão entregues.

E o hospital tem recebido ajuda?

Sim. Ao mesmo tempo que existe a ganância, também temos visto muita solidariedade. Muita gente tem doado. E cada doação vem de coração. Recebemos algumas de R$ 50, de pessoas humildes, e de gente como os irmãos João e Walter Moreira Salles, que doaram R$ 3,4 milhões. Agradecemos muito e pedimos que, se possível, as pessoas passem a doar equipamentos, máscaras, analgésicos, antibióticos, monitores, enfim, insumos contra a Covid-19. É mais rápido para chegar ao hospital. O dinheiro doado passa por um processo burocrático que consome tempo precioso no combate à pandemia.