O globo, n. 31655, 07/04/2020. Especial Coronavírus, p. 8

 

Capacidade de testagem definirá futuro da pandemia

Ana Lucia Azevedo

07/04/2020

 

 

Especialistas dizem que exames em massa e isolamento são cruciais para reduzir impacto da Covid-19 nos próximos anos

À medida que China, Coreia do Sul e Cingapura veem casos novos de Covid-19 emergirem, em sua quase totalidade importados, cresce o temor de uma segunda onda da pandemia.

Cientistas estão convencidos de que o vírus continuará a ser uma ameaça global por um período que pode chegar a dois anos, segundo algumas previsões. Mas a gravidade de novas ondas em cada país dependerá das medidas de contenção que eles tomarem agora.

O Brasil, que está só no início da subida da primeira onda, ainda não consegue fazer testagem em massa. E as medidas de isolamento social, defendidas pelo Ministério da Saúde e pelos governadores, enfrentam a resistência de parte da população e do presidente Jair Bolsonaro.

Sem isolamento severo e testes, mostram todos os países que baixaram a curva de ascensão da epidemia, é impossível conter o coronavírus.

Uma projeção do grupo Covid-19 Brasil, que reúne universidades brasileiras e as análises até agora, diz que o país tem hoje, na verdade ,82 mil pessoas infectadas, e não 12.056, como anunciou o ministério ontem.

— O momento não é de discutir se uma segunda onda virá, porque isso é certo. A questão será nossa capacidade de testar o maior número de pessoas, saber quantos são os infectados, isolar os casos — alerta um dos integrantes do grupo, Domingos Alves, do Laboratório de Inteligência em Saúde da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo.

Segundo ele, acurvado Brasil está mais íngreme que a dos Estados Unidos e estamos ainda na primeira metade da escalada, cujo pico poderá ser alcançado somente em maio, num cenário otimista, ou em novembro, num pessimista.

Se China e Cingapura com novas medidas de isolamento e alto controle social, além de intensa testagem, são vistas como exemplo e observadas com atenção neste momento em que tentam segurar uma nova onda, Alves e outros pesquisadores, como a professora de virologia da UFRJ Clarissa Damaso, pensam que o modelo asiático pode funcionar lá, mas não é factível no Brasil.

— O nível de controle social, com total comando do governo sobre a vida dos cidadãos, a tecnologia e a capacidade de prover hospitais, profissionais e toda uma infraestrutura de contenção desses países está muito acima do que é possível fazer no Brasil. Temos que focar na testagem em massa e no isolamento social, as medidas que nos são possíveis e funcionam —diz Damaso, assessora do Comitê de Organização Mundial de Saúde (OMS) para a pesquisa com a varíola.

EXEMPLO ALEMÃO

A Alemanha, que tem uma taxa de letalidade abaixo de 1% e é um dos países que mais testaram no mundo, é um exemplo melhor a ser observado, sugerem. A Alemanha

não apenas testa muito (mais de 10% da população), mas começou a testar cedo, isso significa que seu número de infectados é muito mais próximo do real, pois inclui pessoas com sintomas brandos e mesmo algumas assintomáticas.

A Alemanha tem ainda um sistema de saúde pública bem estruturado, isolou cedo todos os infectados e seguiu o distanciamento social com intensa disciplina.

—No Brasil, estamos indo mal em testes. A China está com medo agora de uma segunda onda porque testou muito pouco na primeira. Os chineses não sabem quantos assintomáticos têm, quantos casos leves. Por isso, correm desesperados com medidas de controle e testagem extremas — explica Clarissa Damaso.

O Brasil está entre os países que menos testam no mundo — 258 por milhão, contra 10.962 por milhão da Alemanha, por exemplo.

— O tamanho da segunda onda em cada país depende do comportamento da primeira, de quantas pessoas permanecem vulneráveis, quantas foram infectadas e podem ter adquirido, em tese, imunidade — observa a pesquisadora.

Ela diz que algumas empresas têm planejado testar seus funcionários para saber quantos foram infectados, se recuperaram e poderiam, em teoria, voltar a trabalhar. O problema é que a maioria dos novos testes ainda está em validação e não há garantia sobre os resultados devido ao percentual elevado de falsos negativos e positivos.

Já os testes “padrão ouro”, moleculares, são escassos devido à falta de insumos e, no Brasil, só usados em profissionais de saúde, doentes graves e mortos, quando muito.

— Este não é um momento para relaxar nem pensar em segunda onda. É um momento para aumentar a severidade do isolamento social e focar em baixar a primeira onda, que ainda nem começamos a subir. É dessa escalada que teremos uma visão de novas ondas da pandemia —diz Damaso.