O globo, n. 31655, 07/04/2020. Especial Coronavírus, p. 9

 

Entrevista - Nelson Spector: "A solução definitiva só virá com a vacina"

Ana Lucia Azevedo

07/04/2020

 

 

Hematologista diz que infusão de plasma dos convalescentes de Covid-19 em doentes graves é uma medida extrema para uma situação extrema

ARQUIVO PESSOALAposta na ciência. Para Spector, o problema é que em épocas de desespero as pessoas estão dispostas a acreditar em qualquer coisa

 A infusão de plasma dos pacientes convalescentes de Covid-19 nos doentes graves faz parte do pacote de medidas desesperadas para os tempos extremos em que vivemos. O hematologista Nelson Spector, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), dedicou a carreira a tratar pacientes com câncer no sangue, muitos em situação desesperadora.

No Rio, a técnica será objeto de um estudo da Secretaria estadual de Saúde, por meio do Hemorio. Segundo informou a pasta ontem, pacientes curados no estado serão convocados e avaliados para definir os elegíveis para doação.

Spector observa que a estratégia foi usada já no século XIX contra a difteria, mas a forma de refiná-la traz novidades. Uma frente é a busca de um superanticorpo específico contra o novo coronavírus, que possa ser usado como remédio eficaz.

Segundo o diretor do Hemorio, Luiz Amorim, o plasma coletado pode atender até três pessoas com Covid-19 em estado grave e será distribuído aos hospitais conforme a solicitação dessas instituições.

Qual a evidência de que o plasma de pacientes convalescentes de Covid-19 tem ação terapêutica?

Pequena, mas animadora. O plasma dos convalescentes é uma medida extrema para uma situação extrema. O estudo que levantou essa possibilidade foi publicado na revista Journal of the American Medical Association (Jama). Mas foi realizado por um grupo chinês com apenas cinco doentes graves, no respirador. E eles receberam outros remédios também. Então, é uma opção a explorar, mas não uma solução estabelecida.

E o que seria uma solução?

O plasma de convalescentes contém muitos anticorpos contra o vírus, mas só alguns vão de fato atuar contra ele. Além disso, não é possível regular de modo eficiente a dosagem, que fica dependente da concentração de anticorpos no plasma do doador. Mas será possível encontrar no plasma dos doadores um anticorpo altamente específico contra o Sars-CoV-2. Esse anticorpo pode ser copiado e produzido em larga escala, e a dosagem ideal poderia ser rapidamente determinada e alcançada. São os chamados anticorpos monoclonais. Hoje eles são amplamente usados contra o câncer e doenças autoimunes.

Há estudos avançando nessa linha?

Sim, diversos laboratórios estão buscando identificar os anticorpos mais promissores e cloná-los. Um laboratório da Califórnia está testando no Sars-CoV-2 os anticorpos monoclonais já produzidos contra o vírus da Sars, é um coronavírus com muitas semelhanças com o da Covid-19.

E o plasma dos convalescentes, qual risco pode ter?

Nada está livre de riscos. Não há risco de reação transfusional porque o plasma não tem hemácias, as células vermelhas do sangue onde estão as substâncias que podem causar uma reação. Mas na época da Sars se descobriu que um dos anticorpos produzidos pelo corpo, na verdade, piorava a doença. Ele era uma “loucura” do sistema imunológico, um anticorpo contra uma estrutura dos pulmões, coisa que pode acontecer. Temos que lembrar que o agravamento dos casos de Covid-19 se deve justamente devido a uma “tempestade imunológica”, uma inflamação generalizada causada pela resposta descontrolada do organismo. A infusão de plasma só é cogitada porque os médicos não têm opção, eles veem os pacientes morrendo, se desesperam e começam a experimentar o que podem para salvar vidas. Mas não é o desespero que nos fará avançar.

O que será?

Todo o progresso da medicina nos últimos 50 anos se deve aos estudos clínicos controlados. Milhares de substâncias que pareciam altamente promissoras falharam quando testadas nesses estudos, seja por baixa eficácia ou por alta toxicidade. Há uma estimativa da indústria, segundo a qual para encontrar uma substância eficaz se testam mil. O problema é que em épocas de desespero as pessoas estão dispostas a acreditar em qualquer coisa.

Como o quê?

Como a hidroxicloroquina, por exemplo. Existe chance que funcione? Sempre existe. Mas não é isso que mostra o histórico dela. Foi testada contra a Mers, causada por um outro coronavírus, fracassou e tinha sido abandonada. Estamos todos sob o choque desta pandemia, mas é preciso compreender que a chance de uma substância não funcionar é maior. Se não, as doenças já estariam todas curadas. E há risco de haver uma corrida ao plasma dos convalescentes como há com a cloroquina e a hidroxicloroquina. É mais difícil porque o plasma não é fácil de obter como um remédio.

Mas há risco de golpes, como o da chamada auto-hemoterapia (infusão do próprio sangue)?

Esse risco sempre existe. A chamada auto-hemoterapia nada mais é do que charlatanice. As pessoas veem a Madonna e jogadores de futebol postando esse tipo de bobagem em redes sociais e acreditam. Mas as pessoas procuram a Madonna ou um médico se ficarem doentes?

O senhor vê motivo para otimismo?

Sim. Há mais de 60 testes clínicos (com pacientes) em andamento, feitos com metodologia correta no mundo. Vários medicamentos estão sendo testados, entre eles antivirais, inibidores da “tempestade imunológica”, infusões de células tronco mesenquimais e plasma de convalescentes. Acredito que dentro de um ou dois meses teremos resultados. A solução definitiva, porém, só virá com a vacina. Pelo menos este efeito positivo a Covid terá: o mundo voltará a entender o papel das vacinas no nosso bem-estar.