O globo, n. 31665, 17/04/2020. Opinião, p. 2

 

Qual a escolha?

Merval Pereira

17/04/2020

 

 

O presidente Jair Bolsonaro parecia estar ouvindo o panelaço que se espalhou por diversas cidades do país quando anunciou a demissão do ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. Tenso, com o olhar paralisado, Bolsonaro demonstrou saber o passo que estava dando, talvez maior que sua perna, ao mudar, em meio à pandemia da Covid-19, um ministro que tem 75% de aprovação popular, e apoio dos presidentes da Câmara e do Senado.

Trocado por ciúmes de sua popularidade, e por uma insistência sem base séria para que o distanciamento social seja flexibilizado o mais rápido possível.

Mais tarde, chegando ao Palácio da Alvorada depois de um dos dias mais intensos de seu mandato, Bolsonaro respondeu algumas perguntas ainda com o mesmo olhar arregalado que denotava o temor pela decisão que tomara.

Tossiu, como já tossira durante seu pronunciamento, o que pode ser consequência do nervosismo da ocasião, e respirou fundo como se quisesse extrair força de dentro de si para enfrentar o problema que ele mesmo criara.

Afinal de contas, a retórica do novo ministro Nelson Teich não mudou tanto em relação à de Mandetta, embora tenha dado ênfase à retomada gradual das atividades econômicas. Mas, na prática, não parece próximo esse dia, pois Teich ressalvou que antes de tomar novas medidas, é preciso fazer testes, muitos testes, e entender melhor como o novo coronavírus atua na sua transmissão.

Como não temos dinheiro suficiente para fazer testes na maioria da população, como fez a Coréia do Sul, e nem mesmo acesso a compras no exterior desses testes, que estão em falta no mercado, a situação propícia para a reabertura não acontecerá tão cedo.

O novo ministro tem MBA em Gestão de Saúde pela Coppe e mestrado em Economia na Universidade de York. Hoje, é sócio da Teich Health Care, uma consultoria de serviços médicos. Portanto, sabe como lidar com a gestão de saúde, mas sua experiência até agora é com a medicina privada, que difere muito do Sistema Único de Saúde (SUS), sustentáculo do esquema público que coordena hospitais federais e municipais.

Foi como técnico respeitado que é na área de saúde que ele falou com base científica, o que deu a garantia de que qualquer mudança que for feita o será com bases técnicas, e não políticas.

Mas, como convinha a um ministro recém-chegado, deixou encaminhada uma solução que esteja ‘totalmente alinhada” com o presidente Bolsonaro. Claro que não poderia assumir afirmando que seguiria à risca o que o ministro demitido fazia.

Mas, colocando a ciência como parâmetro, deu esperanças de que não se fará uma mudança brusca, se é que haverá mudança a curto prazo. A visão empresarial do novo ministro, porém, deve lhe custar críticas.

Ontem já corria pelas redes um vídeo em que ele fala sobre como fazer escolhas, dado que os recursos para a saúde são limitados. E dá um exemplo perigoso, que pode fazer sentido numa planilha de custos, mas não na vida real em um governo que tem que ter uma visão humanista. Justamente essa falta de empatia é que marca o comportamento do presidente Bolsonaro nessa fase da vida brasileira.

Dizia Nelson Teich nesse vídeo: “Você tem uma pessoa que é mais idosa, tem uma doença crônica avançada, e ela teve uma complicação. Para ela melhorar, eu vou gastar praticamente o mesmo dinheiro que em um adolescente que está com um problema. O adolescente tem toda a vida pela frente, e o outro é uma pessoa idosa, que pode estar no final da vida. Qual vai ser a escolha?”.

O raciocínio é semelhante ao de Bolsonaro, que já disse várias vezes, e repetiu ontem, que a morte é inevitável: “Deixem os pais, os velhinhos, os avós em casa e vamos trabalhar. Algumas mortes terão, mas acontece, paciência”, disse Bolsonaro certa vez.  

A retórica, no entanto, não tem importância neste momento, e sim a prática. Será preciso aguardar as ações do novo ministro da Saúde para saber o rumo que o combate à Covid-19 tomará nessa segunda fase. Também o comportamento de Bolsonaro. Qual será a reação do novo ministro se o presidente voltar a circular pelas ruas, sem máscara, limpando o nariz com as mãos, tossindo, e cumprimentando os populares que se aglomeram a seu redor ?