O globo, n. 31665, 17/04/2020. Especial Coronavírus, p. 6

 

'A ciência é a luz’

Paula Ferreira

Renata Mariz

17/04/2020

 

 

Mandetta sai com 76% de aprovação

EDU ANDRADE/FATOPRESSDupla. Mandetta é abraçado pelo secretário de Vigilância, Wanderson de Oliveira, na sua despedida

 Em sua despedida do Ministério da Saúde, o agora ex-ministro Luiz Henrique Mandetta convocou os servidores a fazer uma defesa intransigente “da vida, do SUS e da ciência”. Com gestão aprovada por 76% da população, de acordo com pesquisa Datafolha no início de abril, o ex-ministro afirmou que “a ciência é a luz, o iluminismo” e pediu a todos que “apostem suas energias através da ciência”. Mandetta foi aplaudido de pé ao chegar ao auditório do Ministério da Saúde para sua última entrevista coletiva, após reunião com o presidente Jair Bolsonaro, no Palácio do Planalto.

— Fiquem nos três pilares que deles vocês conquistarão tudo, esses pilares alimentam a verdade. A ciência é a luz, o iluminismo, apostem suas energias através da ciência. Não tenham uma visão única, não pensem dentro da caixinha —disse o ministro.

Em sua fala, Mandetta fez um alerta sobre o número de casos de coronavírus no Brasil:

—A vida de uma pessoa na cracolândia tem o mesmo significado quando ela competir pelo leito de CTI com o homem mais rico desse país. Não pensem que não estamos livres de um pico de ascensão dessa doença. O sistema de saúde ainda não está preparado para uma marcha acelerada.

Mandetta aconselhou os servidores a não terem “medo” e a continuarem a trabalhar com afinco, lembrando que a “ciência” é responsável por mudanças de atitude.

— Não tenham medo, não falem um milímetro diferente do que vocês sabem fazer. Deixo esse Ministério da Saúde com muita gratidão ao presidente por ter me nominado e permitido que eu nominasse cada um de vocês. Vocês sabem que ministros passam. O que fica é o trabalho do servidor do Ministério da Saúde do Brasil —disse Mandetta.

O ex-ministro disse ainda desejar uma transição “suave” nos trabalhos da pasta e afirmou que fará orações para a equipe que ficará.

— Que essa transição seja suave, profícua, que tenhamos um bom resultado ao término disso tudo. Ficarei, nas minhas orações, sempre pensando no que de melhor de energia eu possa mandar para cada um de vocês —disse ele.

CONVERSA AMISTOSA

Ele disse que sua “última ordem” é que, caso sejam solicitados, seus auxiliares ajudem a equipe que chegará.

— Se pedirem que vocês tenham que continuar, continuem. Façam o possível para ajudar. É a minha última ordem para vocês.

Durante a coletiva, Mandetta afirmou que teve uma conversa “amistosa” com o presidente e classificou Bolsonaro como alguém “extremamente humanista”.

— A maneira como posso entregar agora a condução do ministério é melhor para que ele organize uma equipe que possa construir outro olhar e que isso possa ser feito com base na ciência. Sei do peso da responsabilidade dele. O presidente é extremamente humanista, ele pensa também nesse momento todo pós-corona. Tenho certeza que Jesus Cristo vai iluminá-lo e abençoá-lo para tomar as melhores decisões — disse, para em seguida agradecer também o Congresso Nacional.

O ex-ministro falou também sobre as mudanças que estão por vir no século 21 e, sem dar detalhes, falou que haverá uma “militância internacional” em Saúde. De acordo com ele, o Brasil tem muito a ensinar para os países do mundo em termos de promoção do direito à saúde.

—Eu também vou lutar no campo da saúde pública mundial, porque temos muito o que dizer para o mundo pelo fato de um país em desenvolvimento ter tido coragem de escrever na Constituição que Saúde é um direito de todos e um dever do Estado brasileiro.

Antes de Mandetta aparecer na coletiva, uma servidora do ministério distribuiu máscaras aos funcionários do Ministério da Saúde e afirmou que “o ministro quer que todos coloquem máscaras”. A galeria lateral do auditório ficou repleta de servidores em apoio ao ex-ministro.

— Lavoro, lavoro, lavoro. Vocês vão ficar com isso no ouvido de vocês por muitos anos — disse o ex-ministro ao chegar para a entrevista.

Ex-deputado federal, Mandetta assumiu o cargo de ministro da Saúde já no início do mandato do presidente Jair Bolsonaro, em janeiro de 2019. Médico ortopedista, durante sua atuação parlamentar fez forte oposição ao governo da presidente Dilma Rousseff e se posicionou contra políticas emblemáticas do governo PT, como o Mais Médicos.

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Uma relação marcada por disputas e contradições

17/04/2020

 

 

Mandetta e o presidente ficaram em lados opostos sobre as medidas usadas para responder à pandemia do coronavírus

SERGIO LIMA/AFP/18-03-2020Ex-aliados. Bolsonaro e Mandetta em entrevista: discordâncias na crise

 Diferentes visões sobre como enfrentar a pandemia do novo coronavírus colocaram em lados opostos o agora ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e o presidente Jair Bolsonaro. A partir das manifestações contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), em 15 de março, a relação dos dois, que nunca foram próximos, foi se deteriorando até culminar na demissão de Mandetta.

As manifestações no 15 de março

O primeiro embate público entre Mandetta e Bolsonaro ocorreu por causa das manifestações contra o Congresso e o STF convocadas por grupos de apoio ao presidente. Três dias antes do ato, Bolsonaro se alinhou às recomendações do Ministério da Saúde, para que fossem evitadas aglomerações, e desencorajou a participação na manifestação numa transmissão ao vivo pela internet com a presença do ministro. Contudo, no dia 15 de março, o presidente compareceu pessoalmente ao ato em Brasília e cumprimentou apoiadores. Na ocasião, Mandetta não se pronunciou sobre o gesto.

Reunião com Congresso e Supremo

Um dia após a manifestação, Mandetta participou de uma reunião com o presidente do STF, Dias Toffoli, da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), para discutir ações contra o vírus. Bolsonaro ficou irritado e exigiu explicações do então ministro.

Isolamento horizontal x isolamento vertical

No dia 24 de março,Bolsonaro fez um pronunciamento em cadeia de rádio e TV no qual defendeu a“volta à normalidade” e fim do “confinamento em massa”, contrariando as orientações do Ministério da Saúde e da OMS. O presidente defendeu que fosse aplicado o “isolamento vertical”, com foco nos grupos de risco. O Ministério, entretanto, não mudou sua política de isolamento horizontal, posição que continuou sendo defendida por Mandetta até sua demissão.

Cloroquina

Desde as últimas semanas de março, Bolsonaro passou a defender o uso da cloroquina no tratamento de pacientes com a Covid-19 e citou estudos do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. As declarações geraram uma corrida às farmácias em busca do remédio e o Exército passou a produzir o medicamento sob ordem do presidente. Mandetta sempre pregou cautela no uso do remédio e resistiu às pressões para que o Ministério da Saúde passasse a recomendar a droga no tratamento da doença. No dia 2 de abril, Bolsonaro recebeu um grupo de médicos para discutir o uso da cloroquina, excluindo Mandetta do encontro.

Tour de Bolsonaro

Nodomingo,dia29demarço, o presidente passeou pelo Distrito Federal e parou por diversas vezes para cumprimentar apoiadores, um dia depois de o ministro da Saúde defender a necessidade do isolamento social para evitar o colapso do sistema de saúde. No dia seguinte, Mandetta disse que não recomendava a ida às ruas no momento.

‘Nenhum ministro é indemissível’

Em entrevista à Jovem Pan, no dia 2 de abril, Bolsonaro afirmou que faltava “humildade” a Mandetta e que “nenhum ministro é indemissível”. O ministro respondeu que “médico não abandona paciente” e disse que não pediria demissão. No dia 5, Bolsonaro ameaçou “usar a caneta” para demitir integrantes do governo que tinham se tornado “estrelas”. No dia seguinte, chegou a decidir pela demissão, mas voltou atrás.