O globo, n. 31637, 20/03/2020. Mundo, p. 30

 

Cortina de fumaça diplomática pode custar vidas

André Duchiade

20/03/2020

 

 

Em meio a momento crítico, governo consegue desviar a atenção pública, mas põe em risco apoio fundamental contra vírus

 Não se sabe se por cálculo ou vocação natural, o governo federal, primeiro por meio do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), e, em seguida, pelo chanceler Ernesto Araújo, procedeu como em tantas vezes diante de um momento crítico: deflagrou uma crise desnecessária, que contraria interesses concretos e estratégicos do país, mas rouba as atenções e pauta o debate público. Conforme o mundo se prepara para o maior esforço global desde a Segunda Guerra, os custos da antagonização coma China podem ser altos, e significar que o Brasil não terá apoio logístico crucial para evitar a perda de vidas.

—Após dois dias seguidos de panelaços, quando fica evidente a inação do governo diante da crise de saúde eque a economia sofrerá enormemente, este ataque à China é um elemento de distração importante. Ele tem uma função instrumental de gerar fumaça para que não se possa enxergar outros incêndios — afirmou Carlos Milani, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ). — A China não vai esquecer este escândalo diplomático quando o Brasil pedir ajuda, e o Brasil vai precisar de ajuda.

A contundência da reação chinesa mostra a importância que Pequim confere ao tema do novo coronavírus, dizem pesquisadores. Após ter controlado internamente a epidemia — por meio, é certo, de medidas só exequíveis em um Estado autoritário — a China assumiu uma postura ofensiva, e envia grandes remessas de kits deteste, máscaras, respiradores e outros insumos para outros países, como objetivo dese afirmar co mouma superpotência da saúde global. A rivalidade nada faz exceto atrapalhar o lugar do Brasil na fila da ajuda.

—Precisamos de tecnologia para lidar com o novo coronavírus. Tudo o que os chineses usaram para o controle interno ficará ocioso. Irão preferir enviar este material para a Itália ou para a Argentina, nos preterindo. Quem perde nessa história somos nós —afirmou Leonardo Ramos, especialista em China da PUC-Minas.

O comportamento de Eduardo, apontam os professores, imita o de Donald Trump, que procura associar a pandemia a Pequim, e chama a Covid-19 de “o vírus chinês”. Em termos geopolíticos, os EUA buscam usar o Brasil para conter a expansão chinesa, agenda endossada por Araújo. Ao contrário dos EUA, no entanto, o Brasil é mais fraco que a China — o país é o maior comprador comercial do Brasil, que teve superávit de US$ 30 bilhões com Pequim em 2019.

—Ao contrário dos EUA, somos aparte fracada corda em termos econômicos e políticos e podemos agravara criseno país, aprofundando a recessão a caminho — afirmou Guilherme Casarões, da FGV-SP.

Em meio ao incêndio, atores mais ponderados como o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), o setor agropecuário e até o vice-presidente Hamilton Mourão procuraram dissociar o filho do presidente do Estado brasileiro e pôr panos quentes. Uma exceção foi o chanceler Araújo, que, segundo Letícia Pinheiro, professora do IESP/UERJ, preferiu a lógica de que “a melhor defesa é o ataque”.

OFENSIVA DE ARAÚJO

Embora tenha dito que a declaração de Eduardo“não reflete a posição do governo brasileiro ”, Araújo deu maior destaque ao fato de que a embaixada chinesa endossou“postagem ofensiva ao chefe de Estado do Brasil ”. Isto de fato aconteceu, mas, ao enfatizar este dado, em vez de, por exemplo, buscar uma negociação nos bastidores antes de se exprimir, acirrou os ânimos e criou uma nova cortina de fumaça.

—A nota de Araújo foi muito hábil, porque tentou inverter a responsabilidade. Ao dizer que Eduardo não representa o governo e que o embaixador ataca o presidente, ele imputa responsabilidade ao outro, e, simultaneamente, tenta encobrir o que todos sabem, que Eduardo é um porta-voz não oficial da Presidência — disse Pinheiro. — O Brasil se consolida cada vez mais como um fantoche em uma disputa entre China e EUA, sem nenhuma autonomia.

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Legislativo e Judiciário veem ‘crise pré-fabricada’

Naira Trindade

Isabella Macedo

Thais Arbex

20/03/2020

 

 

Presidente em exercício do Congresso e o da Câmara pedem desculpas à China; deputados acionam Conselho de Ética

 Integrantes das cúpulas do Legislativo e do Judiciário viram nas declarações do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) responsabilizando a China pela pandemia de coronavírus uma tentativa de desviar o foco dos erros do presidente Jair Bolsonaro na condução da crise epidemiológica. Nos bastidores, líderes do Congresso e magistrados de tribunais superiores classificaramo embate do filho do presidente como país asiático co mouma“crise pré-fabricada ”. Aavaliaçãoé ad eque, diante da fragilidade de Bolsonaro, seus aliados trabalham para construir uma nova narrativa capaz de minimizar o desgaste do presidente.

Caciques do Congresso tiveram acesso alevantamentos que identificaram um alto índice de menções negativas a Bolsonaro em postagens no Twitterd ur ante opron unci amentoàim prensa. Areação do Legislativo foi imediata. Ainda na madrugada de ontem, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), foi ao Twitter para repudiar as declarações e pedir desculpas ao embaixador chinês, considerando as palavras do deputado federal “irrefletidas”.

Na mesma linha, o presidente em exercício do Congresso, Antonio Anastasia (PSD-MG), encaminhou um ofício em que pede desculpas à China pelas declarações de Eduardo. No texto encaminhado ao embaixador Yang Wanming, Anastasia pede para que a mensagem chegue ao presidente Xi Jinping. “Nenhum obstáculo poderá separar nossos povos no combate” à doença, diz o texto assinado por Anastasia, que é primeiro vice-Presidente do Senado e está como presidente em exercício devido ao afastamento de Davi Alcolumbre (DEM-AP), que teve a infecção por Covid-19 confirmada.

Ontem, parlamentares apresentaram representações contra Eduardo ao Conselho de Ética por quebra de decoro parlamentar. Os deputados Marcelo Freixo (PSOL-RJ) e Marcelo Calero (CidadaniaRJ) entraram com um pedido de abertura de processo ético-disciplinar devido às declarações sobre a China.

O deputado já é alvo de três representações no colegiado. Mesmo assim, a avaliação de líderes do Congresso é a de que os parlamentares não devem esticar a polêmica, e seguirem focados na pandemia. Mudar a pauta, dizem, só beneficiaria o presidente — que teria sua atuação menos exposta, ao menos por um tempo.