O globo, n. 31638, 21/03/2020. Mundo, p. 37

 

Sem virar a página

Eliane Oliveira

Daniel Gullino

21/03/2020

 

 

China só quer conversar depois de retratação de Eduardo Bolsonaro

 A crise diplomática causada pelas declarações do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) sobre a China e o coronavírus está longe de acabar. Apesar de o presidente Jair Bolsonaro ter afirmado, na manhã de ontem, que a questão é “página virada”, ele próprio já teria sido informado que Pequim só retomará o diálogo com o governo brasileiro quanto o parlamentar pedir desculpas publicamente ao povo chinês.

—Esse assunto é página virada. Não existe problema com a China. Zero problema com a China — disse Bolsonaro, na saída do Palácio da Alvorada, ao ser abordado sobre a série de postagens de seu filho nas redes sociais, na última quarta-feira, responsabilizando a China pela pandemia de coronavírus.

Fontes próximas a Bolsonaro disseram que ele não tentou falar com o presidente da China, Xi Jinping, sobre o episódio, assim como o Itamaraty não teria mantido contato, ontem, com autoridades chinesas. Porém, revelaram que a expectativa é que uma conversa entre os dois mandatários ocorra na próxima semana. Além das declarações de Eduardo Bolsonaro, Pequim também teria se irritado com a postura assumida pelo chanceler Ernesto Araújo, que reclamou do compartilhamento de um tuíte pelo embaixador e pela missão diplomática que chamava a família Bolsonaro de “o grande veneno deste país”. A informação é que o governo chinês cogita convocar, para consulta, o embaixador do Brasil na China, Paulo Estivallet. Em nota divulgada na quinta-feira, Araújo chamou a reação do embaixador de “inaceitável”

e “desproporcional”, e exigiu que o embaixador chinês, Yang Wanming — cuja missão diplomática reagiu às postagens do parlamentar dizendo que ele havia contraído um “vírus mental” na recente viagem que fez a Miami — pedisse desculpas publicamente ao governo brasileiro. O argumento do Itamaraty é que o embaixador compartilhou em uma rede social mensagens de solidar ieda de à China coma taques ao presidente da República.

EUA NO PANO DE FUNDO

A embaixada chinesa em Brasília reagiu com uma nota ainda mais dura, com uma mensagem com margem a interpretações: o governo chinês teria rejeitado as gestões feitas pelo chanceler, na quarta-feira à noite, durante uma conversa entre Araújo e Wanming. Dentro do governo, existe o temor de que o Brasil acabe entrando em uma briga ainda maior — entre China e Estados Unidos. A avaliação é que é preciso equilíbrio neste momento.

— O Eduardo [Bolsonaro] precisa entender que, sendo o filho do presidente, suas declarações sempre terão uma amplitude enorme. Mesmo com boas intenções, isso acaba sendo negativo — comentou uma fonte.

Há, ainda, a leitura de que Araújo deveria ter agido nos bastidores, e não soltado uma nota malvista pelo regime chinês. A mensagem apreendida pela China é que por trás dessa atitude de Araújo e do parlamentar estaria a estratégia dos EUA de arrastar o Brasil para seu confronto com Pequim. Daí a forte reação do embaixador Yang — visto como um dos quadros fortes no governo chinês. Yang serviu duas vezes na Argentina, uma no Chile e outra no México. Também segundo essas fontes, a reação do diplomata chinês guarda relação direta com a palavras do chefe do Comando Sul, almirante Craig Faller, quando Jair Bolsonaro esteve lá para assinar um acordo de defesa, no último dia 8: a aproximação dos EUA com o Brasil é para conter a expansão da China na América Latina. Mostrando que a crise ainda não acabou, o governo chinês chamou ontem as declarações do deputado de “imorais e irresponsáveis”.

Ontem, o embaixador Yang usou o Twitter para agradecer o apoio dos presidentes da Câmara e do Senado, Rodrigo Maia (DEM-RJ) e Davi Alcolumbre (DEMAP), que pediram desculpas à China. Segundo o presidente da Câmara, a atitude do filho do presidente não condiz com a importância da parceria estratégica entre os dois países. Já Alcolumbre chamou de “infelizes” as palavras de Eduardo Bolsonaro. O embaixador afirmou, sem citar o Brasil, que a China vai oferecer assistência e materiais médicos à Organização Mundial da Saúde (OMS), à União Africana e mais 82 países.

Em meio à crise, faixas com ofensas ao presidente Xi Jinping e ao embaixador Yang Wanming, foram colocadas em frente à missão diplomática em Brasília, ontem.

“Esse assunto é página virada. Não existe problema com a China. Zero problema com a China”

Presidente Jair Bolsonaro, após o tuíte do filho responsabilizando Pequim pela pandemia de coronavírus