O Estado de São Paulo, n.46202, 16/04/2020. Internacional, p.A8

 

Cientistas, governos aliados e rivais criticam corte de verba dos EUA à OMS

16/04/2020

 

 

Donald Trump acusa agência de saúde da ONU de negligência no inicio da crise; decisão de suspender financiamento americano no meio da pandemia é condenada por União Europeia, China, Rússia, comunidade acadêmica e até pelo bilionário Bill Gates

A decisão de Donald Trump de cortar o financiamento dos EUA à Organização Mundial da Saúde (OMS) recebeu ontem uma enxurrada de críticas da comunidade científica e de governos, tanto de aliados tradicionais do país, como Alemanha, França e União Europeia, quando de rivais. ONU, Rússia, China, especialistas e até o bilionário Bill Gates, segundo homem mais rico do mundo, segundo a revista Forbes, também condenaram a decisão.

A crítica mais dura veio de Richard Horton, editor-chefe da revista médica Lancet, uma das mais prestigiosas do mundo. Ele comparou a decisão de cortar verba da OMS no meio de uma pandemia global a um “crime contra a humanidade”. “Todo cientista, todo profissional de saúde, todo cidadão deve resistir e se rebelar contra essa escandalosa falta de solidariedade global”, disse.

Na terça-feira, o presidente americano afirmou que o financiamento ficaria suspenso até seu governo analisar a resposta da entidade à pandemia. Ele acusa a OMS de favorecer a China e sonegar informações. Pressionado por ter minimizado a pandemia no início, Trump vem tentando buscar culpados para pendurar a conta dos mais de 600 mil infectados e quase 30 mil mortos por covid-19 no território americano.

O orçamento total da OMS foi de US$ 5,6 bilhões para o biênio 2018-2019. Os EUA destinaram US$ 893 milhões, entre doações obrigatórias e voluntárias – as últimas, que podem ser retiradas, representam US$ 656 milhões. Além das contribuições dos Estados, a organização também recebe doações voluntárias do setor privado.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou que “não era o momento” de reduzir o financiamento ou apontar erros. A União Europeia também lamentou a decisão. “Não há razão que justifique essa medida em um momento em que esforços são mais necessários do que nunca”, disse Josep Borrell, chanceler da UE.

A China pediu aos EUA que cumpram suas obrigações com a OMS. “Esta decisão vai reduzir a capacidade da OMS e minar a cooperação internacional contra a epidemia”, afirmou Zhao Lijian, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China. O governo russo disse que a decisão dos EUA é alarmante e egoísta diante da pandemia do coronavírus. “A ação merece ser denunciada e condenada”, afirmou Serguei Ryabkov, vice-chanceler da Rússia.

Em entrevista coletiva, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, disse que os EUA foram um amigo de longa data da OMS e espera que essa relação se mantenha. Os americanos são os principais financiadores da instituição, seguidos pelo Reino Unido. “Lamentamos a decisão. Esse é um momento de estarmos unidos contra uma ameaça comum. Quando estamos divididos, o vírus explora essas brechas”, disse.

Na avaliação da professora Deisy Ventura, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, a decisão dos EUA poderia ser considerada um crime contra a humanidade, pois enfraquecer a OMS no momento de uma pandemia global é condenar à morte as populações de países mais pobres. “Reduzir o financiamento é segregar as populações que não têm sistemas de saúde fortes e dependem da OMS para a resposta”, disse. “Também é enfraquecer todos os padrões científicos”.

De acordo com a pesquisadora, Trump quer lançar uma cortina de fumaça para que as pessoas não percebam os erros de seu governo. “Ele faz isso para esconder a catástrofe que foi a resposta americana à pandemia. Ele é responsável pela morte de milhares de americanos porque tardou a reagir, disseminou informações falsas e admitiu muito tarde a gravidade da situação.”

Ontem, o próprio diretor do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA, Robert Redfield, se mostrou incomodado com a decisão. “A OMS tem sido uma importante parceira. A decisão é mais geopolítica do que de saúde pública”, disse Redfield, em entrevista à rede de TV CBS.

Embate. Desde que começou a receber ataques mais duros sobre a falta de ação de seu governo, Trump passou a criticar o que classifica de “omissão” da OMS quando a crise ainda estava no início, na China. Nos primeiros dias da epidemia, a organização divulgou os números chineses sem sinalizar que eles poderiam ser imprecisos.

Além disso, a OMS, segundo Trump, teria demorado para lidar com o risco de transmissão entre humanos, a declarar uma emergência de saúde pública e a usar o termo pandemia.

O presidente dos EUA disse ainda que a entidade foi rápida demais nos elogios a Pequim. Com evidências de que a China silenciava profissionais que denunciavam a gravidade da crise, a OMS teria se esquivado de perguntas sobre problemas relacionados à resposta chinesa ao surto.

As críticas à OMS, porém, vão além da Casa Branca. Taro Aso, vice-primeiro-ministro do Japão, chamou a entidade de “Organização da Saúde da China”. E em todo mundo, quase 1 milhão de pessoas assinaram uma petição online pedindo a renúncia de do diretor-geral da organização.

Contragolpe

“O vírus não conhece fronteiras. A decisão de cortar o financiamento em meio a uma pandemia não faz sentido”

Heiko Maas

MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DA ALEMANHA

“Lamento profundamente a decisão. Não há razão para justificar essa mudança no momento em que, mais do que nunca, os esforços do órgão são necessários para ajudar a conter a pandemia do novo coronavírus”

Josep Borrell

CHEFE DA DIPLOMACIA EUROPEIA

“A decisão enfraquecerá a habilidade da OMS de lidar com a pandemia, especialmente em nações em que essas capacidades não são desenvolvidas”

Zhao Lijian

PORTA-VOZ DA CHANCELARIA CHINESA

“É uma situação que lamentamos porque o compromisso da França e do presidente da República com multilateralismo é conhecido”

Sibeth Ndiaye

PORTA-VOZ DO GOVERNO DA FRANÇA

“Parar de financiar a OMS no meio de uma crise global de saúde é tão perigoso quanto parece. O mundo precisa da OMS. Agora, mais do que nunca”

Bill Gates

BILIONÁRIO E FILANTROPO

“É um crime contra a humanidade. Todo cientista, todo profissional de saúde, todo cidadão deve resistir e se rebelar”

Richard Horton

EDITOR DA REVISTA ‘LANCET’

“Este não é o momento de reduzir os recursos para as operações (da OMS)”

António Guterres

SECRETÁRIO-GERAL DA ONU