Título: Vozes que levam à violência
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 19/12/2012, Brasil, p. 9

Com um olhar agitado e as mãos trêmulas, Gabriel* descreve o que o levou ao Hospital de Custódia e Tratamento da Bahia: "Vai, vai, mata eles. Não, não, hoje não, outro dia. Vai, hoje mesmo". Eram, nas palavras do rapaz de 26 anos, há quase três no estabelecimento, as "vozes de ideia contrária" que ele ouve desde menino. Em uma manhã, Gabriel sucumbiu ao pedido. Passou uma faca no pescoço do padrasto, que, naquele momento, fazia o café. Esperou a mãe chegar e também a matou. Colocou os dois corpos embaixo da cama, até ser facilmente descoberto pelos vizinhos.

As tais vozes que Gabriel ouve são familiares a 42% da população que vive em hospitais de custódia no país, também conhecidos como manicômios judiciários. Essa é a proporção dos acometidos pela esquizofrenia — doença mental complexa cujas causas ainda não são completamente conhecidas. Em segundo lugar nos laudos que trazem o diagnóstico principal dos internos vem o retardo mental, atingindo 16% dos quase 4 mil loucos infratores atualmente detidos, de acordo com estudo financiado pelo Ministério da Justiça obtido pelo Correio.

Para a antropóloga Debora Diniz, coordenadora do levantamento, o dado surpreende. "Todo modelo legislativo fala em sofrimento mental, não em retardo. Se o retardo não tem cura, não tem tratamento, por que mandar esse indivíduo para um hospital de custódia?", questiona. De acordo com ela, a prática afronta a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada pelo Brasil em 2009 e que, por isso, tem força de norma constitucional.

Elias Abdalla, pós-doutor em psiquiatria forense pela Universidade de Londres e coordenador da área na Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), também condena a inclusão de pessoas com retardo mental em manicômios judiciários. "Nos meus laudos, indico que sejam encaminhadas a uma entidade psicopedagógica. Além de ficar desassistido nas instituições de custódia, quem tem retardo mental é altamente influenciável. Imagine estar ao lado de um psicopata", pondera.

O psiquiatra forense membro da ABP Talvane Moraes afirma, entretanto, que a banalização da internação em hospitais de custódia vai além. "Até em casos de outros diagnósticos que poderiam ser tratados em meio aberto, manda-se para a unidade, que se confunde com prisão pela precariedade. Na verdade, o que se quer é dar uma resposta à sociedade, sob o mito de que o louco é perigoso", comenta Moraes.

Sem padrão Cruzamento feito pela pesquisa tentou associar crimes mais graves com determinados diagnósticos, mas não chegou a evidências fortes. "Vimos que atos contra a vida foram cometidos em proporções parecidas pelos indivíduos, independentemente do transtorno escrito no laudo", afirma Debora. Apenas pessoas com transtornos ligados à sexualidade têm o crime sexual como delito predominante.

O índice mais baixo de crimes contra a vida foi entre pessoas com transtornos devido ao uso de álcool e de drogas. Nesse grupo, 31% cometeram tentativa de homicídio ou consumaram o assassinato. A maior taxa ficou com esquizofrênicos e epilépticos, com 51% e 56%, respectivamente. Entre os sujeitos com transtorno de personalidade, na qual se inclui a psicopatia, 36% atentaram contra a vida de alguém.

Abdalla evita tecer comentários a respeito das conclusões por desconhecer o estudo, mas concorda com a derrubada de rótulos sobre pessoas que têm determinados problemas mentais. "Nem sempre o psicopata comete o crime de sangue. Ele é um sujeito extremamente gentil, agradável, finge vínculos, mas não se apega a ninguém, não tem remorso e faz qualquer coisa para conseguir o que quer, sem necessariamente ter que matar. Está entre nós", diz o psiquiatra.

Um quarto dos loucos infratores cometeram delitos contra familiares ou pessoas do convívio doméstico. No caso dos homicídios, essa proporção vai para metade. Ou seja, a cada dois que mataram, um vitimou pai, mãe, irmãos, cônjuge ou filhos. Nessas situações, especialmente se o assassinato ocorre em um contexto de pouco conhecimento sobre as necessidades de um doente mental, os laços afetivos se rompem.

Gabriel, por exemplo, não recebe visitas desde que entrou no manicômio judiciário em Salvador. "Ele matou exatamente as pessoas que cuidavam dele porque estava em surto. Tirá-lo daqui, quando estiver bem, será um desafio", diz a assistente social da instituição, Sônia Campos.

"Doença mental" As falhas do sistema que abriga doentes mentais infratores no Brasil começam logo na entrada. Nada menos que 16% dos homens e das mulheres com internação psiquiátrica compulsória determinada pela Justiça, em virtude da prática de algum delito, simplesmente não têm diagnóstico descrito em seus laudos. A pesquisa nacional sobre esses estabelecimentos mostrou casos absurdos como o do Paraná. No Complexo Médico-Penal de lá, que abrigava 426 internos no momento em que o censo foi feito, 46% não tinham diagnóstico. Nos laudos, apenas a vaga expressão "doença mental". O diretor da instituição, Roberto da Cunha Saraiva, desconhece a informação. "Pode ter havido algum equívoco. Assim que eu tiver a pesquisa disponível, comentarei. Até para pedirmos uma correção", afirma.