O globo, n. 31643, 26/03/2020. Especial Coronavírus, p. 10

 

Reação em cadeia contra o planalto

André de Souza

Leandro Prazeres

Renata Mariz

Paula Ferreira

26/03/2020

 

 

OMS, políticos e até Mourão rebatem posições de Bolsonaro

A defesa do presidente Jair Bolsonaro de pôr fim a medidas de confinamento com a reabertura do comércio e de escolas o deixou isolado no embate mundial contra o coronavírus. Sua proposta de restrição de circulação apenas para idosos e pessoas com doenças crônicas foi alvo de críticas de especialistas de dentro e de fora do governo; da Organização Mundial de Saúde (OMS); de políticos de oposição e até de aliados; de governadores, que mantiveram as medidas restritivas; do Ministério Público Federal; e mesmo do vice-presidente Hamilton Mourão, para quem a posição do governo é o contrário do que disse Bolsonaro.

Na sociedade civil, as propostas do presidente em rede nacional na terça-feira também não encontraram eco. As ruas de capitais como São Paulo e Rio permaneceram vazias durante o dia de ontem. À noite, houve novos panelaços em várias capitais em protesto contra o presidente.

SEGUNDA ONDA

A OMS reforçou ontem que os governos devem “pedir às pessoas que fiquem em casa”, uma orientação que vem sendo seguida por líderes de todo o mundo. Em sua teleconferência diária sobre a pandemia, o diretorgeral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, foi questionado sobre declarações recentes de Bolsonaro. Sem citar diretamente o chefe de Estado brasileiro, Ghebreyesus lembrou que em vários países há muita necessidade de atendimentos de urgência por causa da doença e alertou para a gravidade do quadro atual.

— Como vocês sabem, a pandemia tem acelerado nas duas últimas semanas.— afirmou.

— Acabar com a movimentação da população significa ganhar tempo e reduzir a pressão sobre os sistemas de saúde.

Na mesma entrevista coletiva, o diretor-executivo do Programa de Emergências em Saúde da entidade, Mike Ryan, afirmou que entende o dilema econômico provocado pelas medidas de confinamento da população, mas que a prioridade deve ser salvar vidas.

O vice-presidente Mourão, por sua vez, afirmou que a recomendação do governo continua sendo a de distanciamento social. Ele afirmou que a fala de Bolsonaro é por uma preocupação com uma “segunda onda” que geraria uma crise econômica após o combate à epidemia, e sugeriu que o presidente se expressou mal.

— A posição do nosso governo, por enquanto, é uma só: o isolamento e o distanciamento social. O presidente buscou colocar, pode ser que tenha se expressado de uma forma que não foi a melhor, a preocupação que todos nós temos com a segunda onda, que é a questão econômica —declarou Mourão.

Enquanto o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, tentou se equilibrar diante das falas do chefe, sua equipe deixou claro que vai se fiar em aspectos técnicos para fazer recomendações. O número dois da pasta, João Gabbardo dos Reis, disse que o chamado “isolamento vertical”, abrangendo apenas grupos de risco, só será adotado se os técnicos e especialistas que auxiliam a pasta concordarem.

—A pasta não vai fazer nenhuma mudança na sua sistemática. (O isolamento vertical) É um tema que está sendo estudado por nossa equipe. No momento em que achar o melhor caminho, ele será feito. Não é porque houve uma determinação superior. Ela será implementada se nosso corpo técnico chegar à conclusão —disse Gabbardo.

O secretário de Vigilância em Saúde, Wanderson de Oliveira, por sua vez, reconheceu que as escolas são áreas de concentração de pessoas, na contramão do pedido do presidente para reabertura dos colégios.

O presidente da Câmara fez duras críticas ao posicionamento de Bolsonaro. Maia afirmou que eles não devem se desviar do debate sobre o isolamento social e sugeriu que a mudança de posição do presidente se deve a investidores que atuam na Bolsa de Valores, que teve fortes perdas nas últimas semanas.

—A gente foi vendo parte do mercado caminhando pra isso. Eles são assim, eles vivem de estatística, mas todos nós que fazemos política vivemos das vidas — disse Maia, acrescentando que a crise “não será resolvida com frases de efeito”.

— Eu fico pensando como alguém pode falar de isolamento vertical (para idosos e grupos de risco) se até hoje não apresentou uma proposta de contingenciamento para os idosos brasileiros mais pobres.

ARAS É COBRADO

Houve pressão também sobre o procurador-geral da República, Augusto Aras. Subprocuradores que representam os órgãos de coordenação da cúpula do MPF propuseram a Aras que seja feita uma recomendação ao presidente censurando sua conduta no combate ao coronavírus e exigindo respeito às orientações da Organização Mundial de Saúde( OMS ). Aras ainda não se pronunciou.

Ontem pela manhã, Bolsonaro reafirmou o teor do seu pronunciamento feito na véspera afirmando inclusive que outras doenças mataram mais gente e não houve “essa comoção toda”.

“A posição do governo por enquanto é uma só, a posição do governo é o isolamento e o distanciamento social”

Hamilton Mourão, vice-presidente, sobre o isolamento social contra o coronavírus “Como alguém pode falar de isolamento vertical (para idosos e grupos de risco) se não apresentou uma proposta de contingenciamento para os idosos mais pobres”

Rodrigo Maia, presidente da Câmara “Acabar com a movimentação da população significa ganhar tempo e reduzir pressão sobre sistemas de saúde”

Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, sobre manter a quarentena da população