O globo, n. 31643, 26/03/2020. Especial Coronavírus, p. 15

 

Transmissão comunitária

Ana Lucia Azevedo

26/03/2020

 

 

Genoma mostra que virus ja sofreu mutaçoes no Brasil

Em tempo recorde, cientistas sequenciaram o genoma do novo coronavírus em pacientes das regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste do Brasil.

O trabalho mostra que o vírus Sars-CoV-2 já se propagou no país a ponto de apresentar características que o distinguem dos coronavírus introduzidos. É a comprovação genética da transmissão comunitária, e veio acompanhada de um apelo dos pesquisadores sobre a necessidade do isolamento social para conter o avanço da pandemia no país.

Esse tipo de trabalho se chama vigilância genética viral e é fundamental para saber como e o quanto a Covid-19 se espalha no Brasil.

O desdobramento do trabalho será procurar por mutações que possam ser associadas à gravidade e à facilidade de transmissão. Foram feitos os genomas completos dos vírus de 19 pacientes internados em hospitais de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Goiás, Rio Grande do Sul e São Paulo. Só dois desses 19 vírus têm origem asiática. Os demais são todos de origem europeia.

Uma das autoras do trabalho, Ana Tereza Vasconcelos, diz que há entre eles um “cluster” — um agregado de marcas no genoma que indicam que o vírus introduzido sofreu alterações após chegar ao Brasil. Isso só acontece quando o patógeno está há tempo e em quantidade suficientes para que essas alterações possam ocorrer e ser percebidas.

— Ele está realmente entre nós —afirma Vasconcelos, que é coordenadora do Laboratório de Bioinformática do Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), em Petrópolis.

O Sars-CoV-2 é um vírus de RNA. Seu material genético é muito simples e altamente sujeito a alterações ou mutações. Passar por mutações em pouquíssimo tempo é inerente ao vírus e é por isso que estudá-las permite identificar sua origem, sua “árvore genealógica”, e também detectar mutações perigosas. É um trabalho com importância na prevenção, na contenção e, no futuro, no desenvolvimento de testes, vacinas e terapias.

O sequenciamento é resultado de uma força-tarefa que passou 48 horas trabalhando sem interrupção no fim de semana. Além do LNCC, o grupo reúne cientistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), apoiados pelas fundações de amparo a pesquisa dos seus estados (Faperj e Fapemig) e pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Comunicações (MCTIC).

A iniciativa contou com a parceria de pesquisadores do grupo de Ester Sabino, diretora do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (CADDE/USP), e da Universidade de Oxford, na Inglaterra.

Eles são do mesmo grupo que sequenciou, também em tempo recorde, o genoma do vírus que infectou o primeiro paciente no Brasil.

O novo sequenciamento só foi possível em tão pouco tempo porque teve ainda o trabalho voluntário de alunos de pós-graduação de laboratórios que sofreram cortes recentes de bolsas da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), vinculada ao Ministério da Educação.

SUPERCOMPUTADOR

As amostras foram coletadas de pacientes atendidos pela UFRJ e também de alguns que tiveram exames feitos pelos laboratórios Hermes Pardini e Símile, ambos de Belo Horizonte. O trabalho de sequenciamento foi realizado no LNCC, que tem um dos mais poderosos supercomputadores do Brasil, o Santos Dumont.

— Nosso trabalho reforça a importância do isolamento social e da testagem para conter a transmissão da Covid-19 no Brasil. São as armas que temos agora. Não teremos vacina ou remédios prontos a tempo de salvar as vítimas dessa pandemia — salienta um dos coordenadores do estudo, Renato Santana, do Departamento de Genética, Ecologia e Evolução da UFMG.

O grupo continuará a sequenciar e analisar genomas de coronavírus de pacientes de todo o Brasil e pretende aumentar a rede Força-tarefa de quatro universidades mapeou genes do coronavírus em 48 horas de colaborações, explica Santana. O sequenciamento será feito inicialmente no LNCC, que também funcionará como um banco de amostras genéticas de Covid-19.

O trabalho será constante. A análise genética mostra que ainda há vírus entrando, observam os cientistas.

— Vamos acompanhar a dispersão da Covid-19 e usar inteligência artificial para identificar padrões que possam estar ligados a mudanças importantes, que aumentem a agressividade dele, por exemplo — explica Vasconcelos.

Os cientistas começarão também a analisar amostras de Sars-CoV-2 extraídas do sangue de pacientes em estado grave. Vão investigar se há no material genético desses vírus algum indicador que possa ser associado à severidade da doença. Até hoje, nenhum trabalho revelou que o novo coronavírus sofreu alguma mutação que o tornasse mais letal.

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Ministério libera uso hospitalar da cloroquina em casos graves

André de Souza

Leandro Prazeres

Renata Mariz

26/03/2020

 

 

Compra em farmácia para automedicação contra o coronavírus é vetada

 O Ministério da Saúde anunciou que vai liberar a partir de amanhã 3,4 milhões de unidades do medicamento cloroquina para que os médicos possam avaliar seu uso em pacientes graves infectados pelo novo coronavírus. Foi elaborado um protocolo que prevê cinco dias de tratamento, sempre dentro de hospital e monitorado por um médico, em razão de seus efeitos colaterais. O remédio já é utilizado contra malária, lúpus e artrite.

— O que o Ministério da Saúde está fazendo é deixar no arsenal, deixar à mão do médico. Se ele entender que o paciente grave pode se beneficiar, o que vamos fazer é deixar esse remédio ao alcance dele — disse o ministro Luiz Henrique Mandetta.

O secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Denizar Vianna, destacou que o uso será restrito. Ele disse que, nos casos graves, os benefícios podem superar os riscos.

— Buscamos a literatura científica, identificamos que realmente há uma lacuna de conhecimento, mas, nesse grupo de pacientes, cuja mortalidade pode chegar a 49%, optamos por oferecer, dentro de hospitais, essa alternativa terapêutica —disse Vianna.

—Esse medicamento não é indicado para prevenção. Não é indicado para os sintomas leves.

Segundo o Ministério da Saúde, a cloroquina demonstrou ter ação contra o vírus em laboratório. Também há indicação de melhora nos pacientes graves. Por outro lado, a pasta destacou que ainda são necessárias evidências clínicas mais robustas. “A única evidência mostra aparente redução da carga de vírus em secreções respiratórias”, informou o ministério.

No dia 12 deste mês, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) divulgou um informe recomendando que nenhum medicamento, entre eles a cloroquina, seja usado no tratamento de pacientes com Covid-19 até que se tenha evidência científica de sua eficácia e segurança. Ainda de acordo com o comunicado, alguns produtos podem até piorar o estado de saúde do paciente:

“A Sociedade Brasileira de Infectologia recomenda que nenhuma medicação, como lopinavir-ritonavir, cloroquina, interferon, vitamina C, corticoide etc., seja usada para tratamento de pacientes com Covid-19 até que tenhamos evidência científica de sua eficácia e segurança. Algumas delas, como o corticoide, já demonstraram que podem piorar a evolução de outras viroses respiratórias.”

A entidade, no entanto, fez uma ressalva: “Esta recomendação pode mudar à luz de novos conhecimentos científicos, especialmente porque vários estudos clínicos estão em andamento”.

MORTE NOS EUA

Nos Estados Unidos, um homem de 60 anos morreu e sua mulher, da mesma idade, foi hospitalizada no domingo após se medicarem ingerindo uma forma de cloroquina. Estudos publicados em revistas acadêmicas dos EUA, da China e da França apontaram que essa e outras drogas, atualmente usadas no tratamento da malária e de doenças reumatológicas, apresentaram resultados promissores contra o coronavírus, o que gerou uma procura maciça pelos compostos no mundo.

Segundo a National Public Radio, uma organização americana de mídia sem fins lucrativos, o hospital onde o casal ficou internado, em Phoenix, Arizona, informou que o homem e a mulher ingeriram “fosfato de cloroquina, um aditivo comumente usado para limpar tanques de peixes”.

O aditivo para aquário que o casal ingeriu, portanto, não seria o mesmo do medicamento cujo uso é investigado para tratar coronavírus. “Trinta minutos após a ingestão, o casal apresentou efeitos que exigiam internação”, afirma o comunicado do hospital, de acordo com a NPR. Entre os efeitos, náusea e vômitos. O homem morreu de parada cardíaca.

“Dada a incerteza em torno da Covid-19, entendemos que as pessoas estão tentando encontrar formas de prevenir ou tratar esse vírus, mas a automedicação não é a maneira de fazê-lo”, alertou Daniel Brooks, diretor médico do centro de estudos Banner Poison and Drug Information, do hospital no Arizona, à NPR.

Brooks ainda chamou atenção para os perigos da automedicação e disse que é preciso confiar em fontes oficiais, como a Organização Mundial de Saúde e as autoridades estaduais de saúde para aconselhamento médico — “não a internet ou os políticos”.

Na semana passada, assim como o presidente Jair Bolsonaro, Donald Trump, líder americano, destacou a cloroquina e a hidroxicloroquina como compostos promissores para tratamento da Covid-19 e foi criticado por especialistas.

“O que o Ministério da Saúde está fazendo é deixar no arsenal, deixar à mão do médico”

Luiz Henrique Mandetta, ministro da Saúde