O globo, n. 31654, 06/04/2020. Especial Coronavírus, p. 5
Brasil vai testar uso de plasma
Elisa Martins
06/04/2020
Estudos são incipientes e em fase inicial, mas especialistas são otimistas
Um consórcio formado pelo Hospital Israelita Albert Einstein, o Hospital Sírio-Libanês e a Universidade de São Paulo (USP) começará testes clínicos para uso do sangue de pacientes que já se recuperaram do coronavírus em doentes graves da doença. São estudos ainda incipientes e em fase inicial em outros países, mas espera-se que o plasma( parte líquida do sangue, carregada de anticorpos e proteínas) de pessoas curadas possa reduzir a gravidade em hospitalizados e acelerar o combate à doença.
Os testes foram autorizados pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) no sábado. Nesta semana, os especialistas vão começar a fazer a triagem de potenciais doadores no Brasil. O protocolo inclui vários critérios, e nem todos os pacientes recuperados são considerados aptos. Mas não podem apresentar mais os sintomas e devem ter comprovação laboratorial de que tiveram a doença eque apresentamos chamados anticorpos neutralizantes, moléculas específicas que podem combater a infecção da Covid-19.
— Acreditamos que, se a terapia funcionar dentro do que esperamos, ela possa ser útil para alguns pacientes e fornecer os anticorpos necessários para aqueles que ainda não os têm em níveis capazes de protegê-los, levando o paciente a uma melhora dos sintomas e à diminuição do vírus no organismo —explica Luiz Vicente Rizzo, diretor-superintendente de Pesquisa do Einstein.
ANVISA PEDE CAUTELA
A expectativa, afirma,é que no futuro a terapia evite que um grande número de pessoas vá para a UT I, eque ajude a diminuir o número de pacientes necessitados de suporte respiratório durante a internação. A fase de triagem de doadores deve durar até três semanas.
A pesquisa é baseada em experiências com outras patologias. Há mais de cem anos, pesquisadores identificaram que a transfusão de plasma de pacientes recuperados poderia ajudar na recuperação de infectados de gripe espanhola.
—Em teoria, tem tudo para funcionar — diz o diretor do Instituto do Cérebro, Paulo Niemeyer.
— Embora com menor rigor científico e com uma medicina de menos recursos, os trabalhos da época indicavam uma redução de quase 50% da mortalidade. Há uma porcentagem grande de pacientes morrendo porque não respondem a nenhum remédio. Isso deve ser tentado.
No Rio, o Hemorio aguarda autorização para iniciar estudos clínicos.
Mais recentemente, testes com plasma de pacientes curados foram realizados em casos de ebola, influenza, Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars) e Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers).
—É um conceito denominado transferência passiva de imunidade e, como a pesquisa parte da hipótese de que irá prover anticorpos para o paciente que não apresenta resposta imunológica, acreditamos que a recuperação seja rápida —conta Rizzo.
Testes promissores já foram realizados com pacientes graves de coronavírus na China. Os EUA tiveram aprovação da FDA, a agência reguladora americana, e iniciaram estudos clínicos nessa linha. França e Reino Unido também.
—Relatos na China mostraram que alguns pacientes se beneficiaram dessa terapia. Mas ainda faltam controles bem estabelecidos aqui, e não podemos garantir que vai funcionar. É uma experiência.
Mas baseada em experiências prévias positivas —diz Silvano Wendel Neto, diretor do Banco de Sangue do Hospital Sírio-Libanês.
Entre os desafios, está o de encontrar indivíduos que tenham anticorpos neutralizantes para o coronavírus em grande quantidade.
— É uma seleção extremamente criteriosa — explica Wendel.
—E uma pesquisa endereçada, neste momento, a pacientes graves, já entubados ou próximos a ser entubados. São os que merecem maior atenção. O objetivo é de certa forma encurtar ou mitigara gravidade desses pacientes. Aí teremos um benefício.
Acautelados médicos se deve a vários motivos. Um dele sé que ainda não se sabe se a pesquisa trará solução para todos os pacientes. Em nota sexta, a Anvisa chamou a atenção para que “os resultados derivam, em geral, de estudos não controlados”. A agência ponderou que, embora promissor, “o tamanho limitado das amostras e o desenho dos estudos impedem a comprovação definitiva sobre a eficácia potencial desse tratamento, requerendo avaliação mais aprofundada na forma de ensaios clínicos”. Outra preocupação é evitar um furor como o causado pela expectativa deu soda cloroquina contra o coronavírus.
Como o sangue de pacientes curados pode ajudar doentes graves
O QUE É
A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) aprovou a realização de testes clínicos com o plasma de pacientes que já se recuperaram do coronavírus em pessoas internadas em estado grave da doença. O plasma é a parte líquida e incolor do sangue, composta de água, proteínas e anticorpos
QUEM PODE DOAR
O protocolo prevê vários critérios para doadores. Mas principalmente são considerados aqueles que tiveram a Covid-19 há mais de 15 dias e há menos de 45 dias, que já não apresentam sintomas e que têm comprovação laboratorial de que tiveram a doença e que apresentam os anticorpos neutralizantes
NO BRASIL
Um consórcio formado pelo Hospital Israelita Albert Einstein, Hospital Sírio-Libanês e Universidade de São Paulo (USP) começará os estudos. A primeira fase será de triagem de doadores e começará nesta semana
POR QUE
Especialistas acreditam que a transfusão de plasma sanguíneo (com os anticorpos) de pessoas curadas da Covid-19 pode ajudar no combate à infecção em pessoas com dificuldade para desenvolver suas próprias defesas. A ideia é que, ao inserir esses anticorpos no organismo de doentes graves, eles ajudem a inibir a replicação do vírus e, então, facilitem a recuperação
PLASMA X CLOROQUINA
Ainda não há dados que prevejam se este será um tratamento mais seguro ou promissor do que a cloroquina. Ambos são estudos incipientes. O que há é uma busca na comunidade científica por uma resposta a uma doença que tem se mostrado desafiadora mundo afora
LÁ FORA
Estados Unidos, Itália, França, Reino Unido e China iniciaram testes clínicos para uso de plasma de pacientes curados em doentes graves por coronavírus
COMO FUNCIONA
O procedimento é parecido ao de uma doação de sangue comum, mas neste caso o sangue colhido passa por uma máquina que extrairá apenas o plasma. Cada processo desse, que dura de uma hora a uma hora e meia, pode produzir material para tratar até três pacientes
HISTÓRICO
A transfusão de plasma com anticorpos já foi usada em epidemias anteriores, como a da gripe espanhola, em 1918, no combate à influenza, ebola, Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) e Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS)
ENTRAVES
A pesquisa pode não trazer uma solução para todos os pacientes, mas apenas para os que se enquadram nos critérios de uma resposta imune inadequada contra o vírus. Especialistas afirmam, porém, que a técnica não impede a associação de outros tratamentos