Correio braziliense, n. 20806 , 10/05/2020. Política, p.2

 

Independência da PF sob ameaça

Renato Souza

10/05/2020

 

 

PODER » Tentativa de interferência na corporação, insistência do presidente em impor o nome que lhe interessa, veto de ministro do STF, aproximação com a Abin... Todos esses fatores levaram o temor, para dentro da polícia judiciária, de que sua capacidade investigativa possa ser manietada

A Polícia Federal foi pega de surpresa por alterações profundas na estrutura administrativa da corporação. Começou com a saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça, que era visto como um defensor da independência da PF no governo e tem o respeito de boa parte da corporação desde a Operação Lava-Jato. Substituído por André Mendonça, conhecido pelo profundo alinhamento com o presidente Jair Bolsonaro, os temores de que a PF seria manietada aumentou. Mas o que parece ser a confirmação de que o campo de ação da polícia judiciária será restringido veio com a colocação de Rolando Alexandre Souza, ex-número 2 da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) no comando da PF–– saída caseira ante o impedimento, determinado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), à nomeação de Alexandre Ramagem, que, por enquanto, permanece à frente dos arapongas.

A saída de Moro em si já seria preocupante, mas acendeu a luz vermelha diante das acusações que fez ao presidente Jair Bolsonaro de interferir na Polícia Federal, tentando obter acesso a relatórios de inteligência policial e insistindo na troca do diretor-geral e do superintendente do Rio de Janeiro, estado onde está sua base eleitoral. Ali, pelo menos cinco investigações interessam à família Bolsonaro, entre elas, a apuração de movimentações atípicas em contas de Fabrício Queiroz, ex-assessor parlamentar do hoje senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ). O inquérito segue em sigilo, mas mira pessoas próximas ao presidente e aos filhos dele.

Em uma petição enviada, na última quinta-feira ao STF, Moro reforçou as denúncias que havia feito e “destacou a relevância de manifestações incisivas do presidente da República” em uma reunião ministerial, “especialmente vinculadas ao desejo de troca da direção-geral da PF, do superintendente do Rio de Janeiro e, inclusive, do próprio ministro da Justiça, além da intenção de obter relatórios de inteligência junto a referidos órgãos policiais”. De fato, após a demissão do então diretor-geral, Maurício Valeixo, e da saída de Moro, o superintendente da PF no Rio foi trocado. Carlos Henrique Oliveira, que tinha elevada aprovação de agentes e delegados, deu lugar a Tácio Muzzi, que chegou a ficar no comando da unidade por cinco meses no ano passado.

A escolha de Muzzi foi um alívio, pois ele não tem proximidade com os Bolsonaro. Ele atuou na Lava-Jato e está na PF desde 2003, tendo ocupado o cargo de chefe da Delegacia de Repressão à Corrupção e Crimes Financeiros, da Superintendência do Rio. Além disso, foi diretor-adjunto do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional e dirigiu o Departamento Penitenciário Nacional (Depen). De perfil técnico, Muzzi terá o desafio de manter em curso as investigações a salvo de ingerências políticas.

Carlos Henrique Oliveira será diretor-executivo da PF, o número 2 da corporação. Apesar de o governo afirmar que se trata de uma promoção, na prática o delegado “caiu para cima”: deixou a área de investigação para atuar no controle de portos, aeroportos e regiões de fronteira, além de cuidar de assuntos administrativos.

Incertezas

Para o diretor jurídico da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), Flávio Werneck, as incertezas prejudicam os trabalhos da PF. Ele explica que o poder para que o presidente da República escolha o diretor-geral da corporação foi instituído por meio de medida provisória, no governo Dilma, e que tramitou rapidamente pelo Congresso. “Essa situação de levar ao Poder Judiciário a discussão de cargos é muito ruim. Entendemos que ,tanto o primeiro indicado, quanto o diretor agora nomeado cumprem os requisitos legais. Mas a questão política é complicada de debater. Desde 2014, infelizmente, ou felizmente, a escolha é do presidente da República. Nós, da Federação, fomos contra essa legislação”, explica.

Ainda segundo Werneck, é necessário mais autonomia nas investigações e os policiais anseiam pela criação de uma lei orgânica. “É o que mais queremos, há 31 anos. Para que se discipline quais as atribuições, o que é obrigatório, direitos e deveres inerentes aos cargos e como os policiais federais vão ser tratados dentro da carreira”, diz ele, ressaltando que desejam, também, autonomia investigativa.

Judicialização

Um ato do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, impediu Bolsonaro de nomear o delegado Alexandre Ramagem –– amigo do filho 02 do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro –– para o comando da corporação. O magistrado viu, com base nas declarações de Moro, o risco de Remagem atuar em favor dos interesses da Primeira Família dentro da PF. Ramagem continua a ocupar o cargo de diretor-geral da Abin, mas todos na PF acreditam que é ele quem dará as cartas no órgão.

A percepção é de que Rolando Alexandre Souza, ex-número dois da Abin, será apenas um testa de ferro de Remagem. Para policiais, Rolando aproximou a agência que assessora o presidente no setor de inteligência da polícia judiciária. “Esse é um alinhamento histórico e preocupante. São trabalhos que podem dialogar para prestar o melhor serviço à sociedade, mas a PF não pode atuar a serviço do presidente. Dentro da corporação, esse alinhamento é tido como certo em alguns assuntos”, afirma uma fonte na PF, em contato com a reportagem.

Uma crise a passos rápidos

23 de abril:

Presidente Jair Bolsonaro avisa ao então ministro Sergio Moro sobre troca no comando da PF, que discorda.

24 de abril:

Moro pede demissão alertando para risco de interferência presidencial na PF.

Diário Oficial da União oficializa a demissão do delegado Maurício Valeixo do cargo de diretor-geral da PF.

Procuradoria Geral da República pede abertura de inquérito para investigar acusações de Moro.

27 de abril:

Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, abre inquérito contra Bolsonaro.

28 de abril:

Delegado Alexandre Ramagem é nomeado pelo presidente diretor-geral da PF.

29 de abril:

Ministro Alexandre de Moraes, do STF, suspende a nomeação de Ramagem.

4 de maio:

Em substituição, Rolando Alexandre Souza é nomeado, por Bolsonaro, diretor-geral da PF.

7 de maio:

Advocacia-Geral da União pede que Moraes reconsidere a decisão que impediu a posse de Ramagem.

8 de maio:

Moraes nega o pedido da AGU e mantém a proibição contra Ramagem.

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Ato esvaziado volta a defender o golpe

Alan Rios

10/05/2020

 

 

Brasília voltou a assistir  à nova carreta de bolsonaristas, ontem, na Esplanada dos Ministérios. Esvaziada e sem a presença do presidente –– que, à tarde, andou de jet ski pelo Lago Paranoá ––, o ato mais uma vez atacou Supremo Tribunal Federal (STF), Congresso, imprensa e governadores. Os organizadores, porém, insistiam que o protesto era democrático, mesmo pedindo um golpe de estado com o fechamento do Parlamento e da Corte.

Uma faixa ameaçadora mostrava foto de um tanque de guerra com a frase: “Um presente do povo para o Congresso e o STF.  Aguardem”. Um caminhão enfeitado como um carro de campanha puxou a carreata. Apoiadores diziam-se “soldados de Bolsonaro”.

Não faltaram ataques à imprensa e até acusações de que “a mídia é comunista!”, como berrou uma manifestante. Os ambulantes ajudavam a disseminar o ódio vendendo camisetas com dizeres contra uma emissora de televisão. Jornalistas foram ofendidos, mas a organização amenizou dizendo que os repórteres não tinham culpa pela linha editorial dos veículos.

Governadores não foram poupados e mesmo o hino antifascista Bella Ciao serviu de paródia contra o presidente da Câmara, Rodrigo Maia –– com o grito “Maia, tchau”. Também de manhã, Bolsonaro tuitou chamando os jornalistas de “idiotas” ao dizer que o churrasco, que cancelou devido à má repercussão no momento em que as mortes pela covid-19 chegam a 10 mil, era “fake”.

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Aras pede para ver vídeo de reunião

Alessandra Azevedo

10/05/2020

 

 

O procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) para ter acesso “com urgência” à íntegra do vídeo da reunião do presidente Jair Bolsonaro com ministros, para avaliar se o material precisa ficar sob sigilo, como demanda o governo. Ele enviou a manifestação, ontem, ao ministro Celso de Mello, relator do caso, um dia depois de o governo ter enviado o material à Corte.

O ex-ministro da Justiça Sergio Moro afirmou que, na reunião ministerial de 22 de abril, no Palácio do Planalto, Bolsonaro tentou interferir em investigações da Polícia Federal e ameaçou demiti-lo caso não trocasse o comando da corporação no Rio de Janeiro. O STF abriu um inquérito para apurar as acusações e solicitou o vídeo do encontro.

Ao enviar a gravação a Celso de Mello, o governo pediu que fosse mantida em sigilo, com o argumento de que, na ocasião, “foram tratados assuntos potencialmente sensíveis e reservados de Estado”. O ministro concedeu sigilo temporário, na última sexta-feira, até que a PGR se pronunciasse sobre o assunto, o que aconteceu ontem.

Na manifestação, Aras afirma que precisa assistir ao vídeo antes de avaliar a necessidade de sigilo, já que não foi classificado como ultrassecreto, secreto ou reservado. O registro, segundo ele, deve ser enviado à PGR antes dos depoimentos de testemunhas, que começam amanhã, às 10h. O encaminhamento da íntegra, em caráter de urgência, servirá “para orientar a autoridade policial e os procuradores”, disse.