O Estado de São Paulo, n.46206, 20/04/2020. Economia e Negócios, p.B1

 

'Invisíveis', 5,5 milhões de informais correm risco de perder ajuda de R$ 600

Douglas Gravas

20/04/2020

 

 

Segundo levantamento do Instituto Locomotiva, esse é o número de brasileiros que têm direito ao auxílio emergencial do governo, mas não estão no Cadastro Único, não têm conta em banco nem acesso à internet; fazer o dinheiro chegar a essas pessoas é um desafio

De fora. ‘A gente aprende a não contar com o dia seguinte’, diz Adalberto

Quando o casal Viviane Santos, de 26 anos, e Adriano da Silva, de 39, soube do auxílio emergencial de R$ 600 para informais e autônomos de baixa renda por conta da pandemia do novo coronavírus, a sensação foi de alívio. “Mas, quando vimos a burocracia para conseguir o recurso, foi como se o fim do túnel ficasse mais longe”, diz Viviane.

“O trabalho desde a pandemia está reduzido a zero”, conta Adriano, que é pedreiro. Sem emprego fixo e morando em uma ocupação na periferia de São Paulo, eles nunca contaram com o poder público para o básico: água, luz ou saneamento. O acesso à internet, que Viviane usaria para marcar faxinas, também é raro. “É como se a gente fosse invisível”, resumem.

Entre os economistas, é quase um consenso que o benefício de R$ 600 para desempregados, autônomos e informais de baixa renda é fundamental para evitar o colapso de milhões de famílias, que ficaram sem rendimento durante o isolamento social. Mas fazer o recurso chegar a quem não fazia parte de programas como o Bolsa Família ou estava inscrita no Cadastro Único (um instrumento do governo que identifica as famílias de baixa renda) é mais difícil do que parece.

O primeiro desafio era inscrever 11 milhões que não estavam no Cadastro Único do governo, mas têm direito ao benefício, segundo cálculo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O segundo é fazer o pagamento. Para quem não tem conta em banco, a Caixa Econômica Federal prometeu criar 30 milhões de poupanças digitais, movimentadas via aplicativo.

Só que mais de 5,5 milhões de brasileiros com renda de até meio salário mínimo, elegíveis para receber o benefício, não têm conta em banco ou acesso regular à internet, mostra pesquisa do Instituto Locomotiva, feita a pedido do Estado. Parcela quase invisível da população, são eles que correm o maior risco de não receber o auxílio.

“A crise do coronavírus tirou renda e jogou para a pobreza muita gente que tinha pouco, mas não era alvo de programas sociais. O vírus joga luz a problemas que já existiam, como a baixa renda dos informais, e acentua uma desigualdade histórica”, diz Renato Meirelles, que é presidente do Instituto Locomotiva.

Vida real. Onde o poder público não chega, quem mais precisa se une. No Rio, é uma associação de camelôs que cadastra e faz o acompanhamento do pedido de benefício para colegas sem internet ou conta em banco. “Fazemos o pedido e monitoramos o andamento”, conta a ativista Maria de Lourdes do Carmo. “Se a gente não se unir, todo mundo vai sofrer.”

“A ajuda vem de ONGs e associações que nunca tiveram a simpatia deste governo”, lembra o diretor da FGV Social, da Fundação Getulio Vargas, Marcelo Neri. “É preciso agir: a crise chegou após cinco anos de aumento da pobreza. No fim de 2019, a desigualdade de renda do trabalho, enfim, parou de subir, mas deve voltar a crescer.”

“O auxílio é bem desenhado. O desafio é chegar a todos”, diz Pedro Herculano de Souza, técnico do Ipea que estuda a desigualdade de renda.

Na sexta-feira, a Caixa Econômica Federal informou que 9,1 milhões de pessoas que se inscreveram para o programa pelo aplicativo ou site receberiam a parcela de R$ 600 até hoje.

Procurado, o banco não respondeu até a conclusão desta reportagem como o governo fará para que o auxílio chegue às famílias sem conta e acesso à internet e como elas irão movimentar as poupanças digitais.

Prazo

Na sexta-feira, a Caixa Econômica Federal informou que 9,1 milhões de pessoas que se inscreveram para o programa pelo aplicativo ou site receberiam a parcela de R$ 600 até hoje.

DEPOIMENTOS

MÁRIO SANTOS, 51 ANOS

‘A gente aprende a ir se virando como pode’

“A minha internet é a assistente social que dá entrada nos programas sociais para mim e me ajuda a pesquisar o que preciso. Ela me ajudou a entrar com o pedido do benefício de R$ 600 e agora é esperar para ver se esse dinheiro vai chegar mesmo. Fazia pinturas e pequenos serviços como auxiliar de pedreiro. Quando algum vizinho conseguia um trabalho de reforma em alguma casa, acabava me levando também, para ajudar no serviço. Não era um dinheiro certo, mas a gente acabava se virando. Nas últimas semanas, o trabalho desapareceu. Com esse vírus por aí, quem é que vai gastar para reformar alguma coisa ou querer ficar recebendo gente de fora em casa? A sorte é que todo mundo por aqui se ajuda bastante, quem consegue ganhar uma coisinha a mais divide com os outros. A gente aprendeu a ir se virando como pode.”

JOSÉ CARLOS DE ASSIS, 58 ANOS

‘Sei que devo ficar em casa, mas tem de ser com fome?’

“Conta em banco serve para alguma coisa, quando a gente não tem o que guardar? Nunca sobrou muito, mas nos últimos dias, fiquei totalmente sem recursos. Grande parte do que a gente consegue comer por aqui é catando frutas e verduras que sobram na feira ou em sacolões, mas até a feira teve de ser reduzida, para não colocar a saúde das pessoas em risco. A comida, então, parou de chegar. A gente fez uma horta entre os vizinhos e acaba comendo o que vem de lá, mas é pouco. Não tenho internet e nem sei direito como pedir recursos, mas esse dinheiro ajudaria bastan- te quem se acostumou a nunca ter muito. A gente se sente esquecido às vezes, por não ter o mínimo. Precisa de um hospital? Não tem. Nem escola e nem opções de lazer. Sei que todo mundo agora deveria ficar em casa. Mas preciso ficar com fome?”

 ADALBERTO ALVES, 36 ANOS

‘A gente acaba não contando com o dia seguinte’

“Por aqui na ocupação, a gente sobrevive porque todo mundo se ajuda muito. O terreno fica no alto desse morro, a subida é difícil, mas a vista compensa. A gente nunca ficou esperando as coisas caírem do céu, todo mundo sempre se esforçou para ter uma casinha. Fizemos uma horta comunitária, comecei a criar porcos e compramos frutas em um terreno vizinho, para dividir com todo mundo. Às vezes, também ganhamos cestas básicas que ajudam a matar a fome. Funciona mais ou menos assim: você sabe que não pode ficar esperando pela ajuda, mas toda ajuda que vem é bem-vinda. Quando falaram que ia ter esse auxílio do governo, fiquei empolgado, mas imaginei que muita gente que precisa iria ficar de fora desse benefício. A gente que trabalha sem carteira assinada acaba aprendendo a não contar muito com o dia seguinte.”