Título: A chave da liberdade
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 03/12/2012, Brasil, p. 06

Presos e menores que cumprem medidas socioeducativas encaram, esta semana, as provas do Enem em busca de uma vida melhor

Revisar fórmulas, fixar conceitos, tirar a última dúvida sobre aquela teoria complicada são as preocupações atuais de 23.665 inscritos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), edição 2012, que será aplicado amanhã e quarta-feira. Para esses candidatos, a prova que dá acesso a algumas das melhores universidades do país, aplicada a 4,1 milhões de estudantes em novembro, representa bem mais que a chance de ingresso no ensino superior. Pode significar o estímulo que faltava para uma verdadeira guinada na vida de adolescentes e adultos privados de liberdade por terem cometido infrações e crimes. A edição especial do teste levará a presídios e unidades socioeducativas de 26 estados e do Distrito Federal, esta semana, algo pouco comum naqueles espaços: esperança.

“Quem sabe não consigo passar para administração?”, pergunta D., internado em uma unidade socioeducativa do Distrito Federal há um ano e meio. Privado de liberdade por ter matado uma pessoa, o rapaz de 20 anos planeja se formar para, depois, fazer um concurso público. “Sendo servidor, está bom demais para mim”, diz ele sobre o que pretende fazer daqui a quatro meses, quando deixar o centro de internação. Para o jovem, que concluiu este ano o ensino médio na escola da unidade socioeducativa, o teste mais difícil é a redação. “Não consigo organizar as ideias para escrever. Já fiz uma prova do concurso da Caesb, recentemente, mas achei muito complicada”, lamenta.

Diferentemente de D., que já conquistou o diploma do ensino médio, brasileiros privados de liberdade terão a oportunidade de obter o canudo por meio do Enem. É preciso ter mais de 18 anos e conseguir as notas mínimas exigidas no edital, que variam entre 400 e 500 pontos nas provas de conhecimento e de redação. Por esse motivo, a pedagoga Gabriela Rodrigues, chefe do Núcleo de Ensino da Unidade de Internação de Planaltina, fez a inscrição de todos os internos maiores de idade. Geralmente, são meninos que entraram no estabelecimento antes de completar 18 anos. Ela não tem certeza, entretanto, de quantos farão o teste. “Jovem, de uma forma geral, é muito instável. Ora ele quer fazer o Enem, daqui a pouco resolve que não quer. Só no dia saberemos.”

Recorde de inscrições

Apesar do risco de abstenção elevada, o número de inscrições este ano superou em 69% o de 2011. Ano passado, foram 13.962. Um dos candidatos do Enem 2012 é M., o mais velho e único homem de cinco irmãos. O rapaz de 20 anos se prepara para a prova tanto durante as aulas, na escola que fica dentro da unidade, quanto nas horas livres. Embora a rotina seja pontuada por horários rígidos, é permitido levar os livros para a cela onde dorme. O sonho do garoto internado por roubo é se tornar químico, em virtude da facilidade e do gosto por tabelas periódicas, moléculas, átomos e outros itens da disciplina considerada difícil por muitos estudantes. Já com o português, a relação não é lá tão amigável. Apesar disso, ele diz que gosta de ler. “Li aquele livro A cabana (do canadense William P. Young) e gostei.”

Internado há um ano e três meses, M. chegou a fazer o Enem quando estava no primeiro ano do ensino médio, antes do episódio que o levou à internação. Lembra que não achou a prova tão difícil. Na empreitada atual, acredita que tem mais chances de conseguir a aprovação. “Aqui, o que não falta para a gente é tempo. Então, a gente tenta estudar mesmo para tentar sair melhor”, diz M. A consciência do jovem — pai de um bebê de quatro meses —, entretanto, nem sempre foi essa. Na primeira autorização para passar o Dia das Mães em casa, M. não voltou para a unidade de internação. “Evadi. Não queria voltar de jeito de nenhum. Mas, depois de oito meses, me encontraram. Aí não teve jeito. Voltei e ainda perdi as vantagens, do tipo poder ir para casa”, lamenta.

Mais consciente, o rapaz pretende agora concluir o prazo de internação e, quando sair, cuidar das mulheres da família. “Tem minha filha e mais quatro irmãs”, ressalta. D., por sua vez, sonha em se tornar um servidor público “de qualquer lugar”.

Para a pedagoga Gabriela Rodrigues, o simples fato de ter planos conta muito para os meninos que cometeram infrações. “São jovens, muitas vezes, desestruturados, que não têm muitas perspectivas. Poder participar de um exame como o Enem trabalha a autoestima deles, a confiança de que é possível mudar. Eles são instáveis e, às vezes, estão indo bem, vão para casa, retomam as amizades e voltam a cometer infrações. Mas isso não é a regra, eles podem seguir outra trajetória se estimulados”, acredita ela.

O Ministério da Educação (MEC) não informou quantas pessoas privadas de liberdade conseguiram, por meio do Enem, no ano passado, ingressar no ensino superior. Além de permitir o acesso a vagas ofertadas pelas universidades públicas, o teste é uma forma de participar da seleção do Programa Universidade para Todos, que concede bolsas de estudo para alunos carentes em instituições particulares.

"Poder participar de um exame como o Enem trabalha a autoestima deles, a confiança de que é possível mudar" Gabriela Rodrigues, chefe do Núcleo de Ensino da Unidade de Internação de Planaltina

23.665 Número de presos e de menores internados inscritos na edição 2012 do Enem