Valor econômico, v.21, n.4995, 07/05/2020. Brasil, p. A2

 

Teich critica 'fila única' e já admite possibilidade de adotar 'lockdown'

Rafael Bitencourt

Fabio Murakawa

07/05/2020

 

 

Mesmo se valendo de tom conciliador, o ministro da Saúde, Nelson Teich, manifestou ontem sua discordância à adoção da "fila única" para acesso de pacientes com o novo coronavírus aos leitos de UTI, da rede pública ou privada. Além disso, ele admitiu a possibilidade de adotar medidas mais duras de distanciamento social, como o "lockdown", no enfrentamento da pandemia no país.

"A fila única é um assunto bastante delicado. No que eu conhecia, ela tinha um conceito diferente que a fila única do SUS, onde você tenta criar um aumento de eficiência quando se coloca numa ordem e aquilo é distribuído rapidamente. Mas o que eu vi na oncologia, por exemplo, não foi isso. Vi a fila ser menos eficiente do que era antes", afirmou o ministro, em entrevista no Palácio do Planalto.

Teich explicou que a proposta que surge agora, recomendada pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), prevê a incorporação de leitos da rede privada à rede pública. "Não é uma questão de fila, mas de incorporação. Aí, é uma situação que eu tenho que ver com muito mais cuidado, porque tem implicações que vão além desse momento", afirmou.

Na visão do ministro, qualquer decisão precisará ser avaliada de forma "clara, transparente e técnica" com as operadoras de planos de saúde, os gestores de saúde nos Estados e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Para ele, o governo precisa buscar mais eficiência para tornar o SUS capaz de enfrentar a pandemia. "O que eu acredito, e vai ser trabalhado, é realmente um programa de cooperação entre o sistema público e privado. Se necessário for, que haja uma integração dos dois no suporte ao sistema público. A única preocupação é que isso não soe como uma intervenção", disse Teich

Sobre o "lockdown", o ministro afirmou que a medida pode ser necessária para evitar a escalada de casos da covid-19 no Brasil. Porém, tal decisão não pode ser motivada por disputa política.

O bloqueio da circulação de pessoas adotado por Estados e municípios, impedindo a abertura de comércio, tem sido criticada pelo presidente Jair Bolsonaro, o que inclusive provocou o desgaste da relação com o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta.

Para o atual ministro, a questão não precisa ser tratada de forma "radical", mas analisando a realidade local. "Acho importante que a gente discuta a estratégia de acordo com a situação de cada lugar para que a gente não generalize em ser a favor ou contra o 'lockdown'", afirmou.

Desde a chegada de Teich ao governo, o Ministério da Saúde promete apresentar uma diretriz de distanciamento social para ajudar os gestores de saúde de Estados e municípios a fazer a melhor escolha. A orientação, porém, ainda não foi divulgada, mas deverá estabelecer diferentes níveis de isolamento.

"Você vai ter desde medidas simples, como lavar as mãos, fazer distanciamento pequeno, até o 'lockdown'", explicou Teich. Ele reforçou que o confinamento rigoroso será importante especialmente para as cidades com alta incidência da doença, elevada taxa de ocupação de leitos e infraestrutura que ainda não está preparada para enfrentar a pandemia.

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Com isolamento frágil, mortes no Brasil já chegam a 8.536

Hugo Passarelli

07/05/2020

 

 

A disseminação acelerada do novo coronavírus no Brasil é resultado da combinação das decisões do governo federal, medidas de confinamento pouco rigorosas e das limitações do sistema de saúde brasileiro, segundo especialistas. Ontem, o número de mortes registradas foi de 615, levando o acumulado total a 8.536. Com isso, o Brasil tem o sexto maior número de óbitos do mundo, segundo a Universidade Johns Hopkins. Os casos da doença já chegam a 125.218.

"Olhando a experiência internacional, a aceleração das mortes tem a ver com o posicionamento do governo e com a estrutura e a organização do sistema de saúde", diz Adriano Massuda, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) e pesquisador visitante no Departamento de Saúde Global e Populações da Escola de Saúde Pública de Harvard.

Apesar das limitações do Sistema Único de Saúde (SUS), iniciativas complementares poderiam diminuir o impacto da doença. "Mesmo não tendo uma infraestrutura eficiente para oferecer testes, poderíamos ter técnicos e agentes comunitários para fazer ações de diagnóstico precoce e isolamento", disse ontem em debate da FGV e da agência Bori.

Também presente no debate, Ana Maria Malik, coordenadora do FGV-Saúde, afirmou que um dos pontos mais preocupantes na disseminação da doença é a grande circulação de pessoas apesar da quarentena. "O que precisamos mesmo é de mais isolamento social", disse.

Uma das idealizadoras do SUS, Ana Maria lembrou que o momento é distanciamento do Brasil de entidades como a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), braço Organização Mundial de Saúde (OMS). "A cooperação internacional até existe, temos conhecimento do que está ocorrendo em outros países. A questão é que os tomadores de decisão usarão o conhecimento para o que for mais conveniente."

Estudo do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (Nois) confirma que o Brasil está entre os países mais afetados pela covid-19. A análise comparou o país com outras 39 nações durante 21 dias. O marco inicial foi o momento em que todos atingiram 50 casos da doença, e o período analisado foi entre os dias 33 e 53 da pandemia. São dados atualizados até 4 de maio.

No dia 33 da pandemia, a mediana nos países analisados mostrou aumento de 4,3% de novos casos ao dia, percentual que caiu para 1,6% depois de 21 dias. Nos mesmos intervalos, o Brasil teve altas de 7,8% e 6,7%, mostra o estudo, realizado por pesquisadores da PUC-Rio, Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino e Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

De 25 a 30 de março, o país liderou a taxa de crescimento de contaminações e, nos 21 dias do levantamento, a alta oscilou em torno de 7%. "Isso indica que o Brasil e suas regiões ainda não atingiram o pico", diz o estudo.

A mesma tendência ocorre entre os óbitos. Foram analisados 30 países a partir da marca de 50 falecimentos. Em todo o período, o Brasil mostrou taxa de crescimento de óbitos acima de 75% da amostra, liderando o aumento em diversas ocasiões, como nos dias 16, 17 e 28 de abril.