Correio braziliense, n. 20817 , 21/05/2020. Brasil, p.8

 

Especialistas reprovam protocolo

Maíra Nunes

Renata Rios

21/05/2020

 

 

A alteração do protocolo sobre o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19, realizada, ontem, pelo Ministério da Saúde, teve repercussão negativa entre especialistas da saúde. Apontado como “ditatorial”, o protocolo, que antes previa o uso para casos graves da doença, passou a permitir que também seja ministrado em casos leves, com recomendação médica e autorização do próprio paciente ou família. A falta de comprovação científica e os efeitos colaterais graves provocados pela substância são apontados como os pontos mais críticos da decisão.

Rotina

Raquel Riera, coordenadora do núcleo de avaliação de tecnologias em saúde do hospital Sírio-Libanês e professora da Escola Paulista de Medicina (Unifesp), participa de um grupo de pesquisadores que tem mapeado os estudos sobre a cloroquina desde o início da pandemia. “O que temos hoje de evidência não sustenta o uso rotineiro da cloroquina em qualquer situação clínica, seja para pacientes hospitalizados, seja para os não hospitalizados”, afirmou.

A Sociedade  Brasileira de Infectologia (SBI) também desaconselhou a prescrição das substâncias em pacientes leves. De acordo com a entidade, apesar de ser “atraente e desejável” a aplicação de medicamentos em larga escala com o objetivo de beneficiar grande número de pacientes, não há estudos atualmente que permitam inferir essa relação.

O Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz) também ressaltou a falta de evidências científicas conclusivas sobre a eficácia desses ou de outros fármacos para a covid-19. “Apenas com medidas baseadas em evidências científicas será possível avançar de forma segura no enfrentamento dessa doença”, pontuou.

As diretrizes para o tratamento farmacológico da covid-19 do Consenso da Associação de Medicina Intensiva Brasileira, da Sociedade Brasileira de Infectologia e da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia fazem coro à indicação de não usar hidroxicloroquina ou cloroquina de rotina ou associada à azitromicina. “As evidências disponíveis não sugerem benefício clinicamente significativo. Houve entendimento de que o risco de eventos adversos cardiovasculares é moderado, em especial de arritmias”, justifica. O uso preferencial deve ser realizado mediante protocolos de pesquisa clínica.

O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta ironizou a fala do presidente Jair Bolsonaro sobre cloroquina durante entrevista, ontem, na GloboNews. O médico afirmou que “quem é de direita usa cloroquina. Quem é de esquerda, tubaína. E quem é de juízo, escuta a medicina.”

De acordo com Mandetta, é muito mais confortável para Bolsonaro ter um ministro que não é médico. “Qualquer um que se sentou nas cadeiras das universidades de medicina tem dificuldade em assinar”. O médico estava se referindo ao ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello.

Incerteza

No início da pandemia do novo coronavírus, a incerteza e a ausência de opções justificavam o uso exploratório de cloroquina e hidroxicloroquina. Desde então, porém, várias pesquisas apontaram para resultados semelhantes: nenhuma comprovação satisfatória. “Se no início, havia incerteza e plausibilidade biológica, essas não existem mais. Nenhum estudo observacional publicado sugeriu claro benefício. Pelo contrário, vários indicaram potenciais malefícios”, argumenta um grupo de 10 infectologistas de renome de diferentes instituições brasileiras de pesquisa.

 Esses profissionais são ligados à Academia Nacional de Medicina, Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP), Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Fundação de Medicina Tropical do Amazonas, Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz), entre outras. Por meio de uma nota conjunta, os médicos classificam o novo protocolo que flexibiliza o uso da cloroquina como autoritário: “É preciso que se avaliem os conflitos de interesse ligados a essa recomendação quase que impositiva”

Cloroquina e hidroxicloroquina  

Orientações do Ministério da Saúde

» Inclui tratamento de pacientes com sintomas leves.

» A pasta compromete-se, ainda, a disponibilizar e distribuir medicação a estados e municípios.

» Exige prescrição médica e acompanhamento do processo.

» Cabe ao médico avaliar se eventuais comorbidades podem impedir o uso.

» Paciente precisa assinar termo de consentimento atestando saber que não há evidência científica que comprove a eficácia do medicamento.

» Não deve extrapolar o entendimento do Conselho Federal de Medicina (CFM).

O que diz a comunidade científica

» OMS atesta que cloroquina e hidroxicloroquina podem causar efeitos colaterais e que não têm eficácia comprovada no tratamento da covid-19.

» Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) desaconselha a prescrição, observando que há estudos que mostram um potencial de malefícios, como alteração cardiológica.

» Coordenadora do núcleo de avaliação de tecnologias em saúde do hospital Sírio-Libanês e professora da Escola Paulista de Medicina (Unifesp), Rachel Riera reforça que não há evidências de que a cloroquina seja melhor do que o tratamento padrão para pacientes com covid-19. A especialista participa de um grupo de pesquisadores que tem mapeado os estudos sobre as substâncias desde o início da pandemia.

» Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB)  recomenda não usar a substância, pois as evidências disponíveis não sugerem benefício clinicamente significativo e há entendimento  de que o risco de eventos adversos cardiovasculares é moderado, em especial de arritmias.

» A Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia não indica o uso dos medicamentos por entender que o risco de problemas cardiovasculares é moderado, em especial de arritmias, e por falta de evidências da eficácia do tratamento contra a covid-19.

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Lockdown em meio à recorde de casos

Bruna Lima

Maria Eduarda Cardim

Israel Medeiros*

Marisa Wanzeller*

Jailson R. Sena*

21/05/2020

 

 

A um passo de bater 300 mil casos confirmados pela covid-19 e em ritmo acelerado de crescimento, o Brasil se aproxima da Rússia em infectados e deve se tornar o segundo país com mais incidência da doença no mundo. Ontem, o Brasil registrou um novo recorde diário, com 19.951 novas confirmações em 24 horas. Com isso, 291.579 brasileiros já foram diagnosticados para o novo coronavírus. De acordo com o levantamento da Universidade Johns Hopkins, a Rússia soma 308,7 mil infecções. Já os Estados Unidos, que lideram o ranking, têm 1,5 milhão. Em relação aos óbitos, o Brasil continua sendo o sexto país com mais mortes, atrás dos EUA, Reino Unido, Itália, França e Espanha, nesta ordem. Com mais 888 vítimas confirmadas ontem, o país registra 18.859 vidas perdidas.

Ao promover um megaferiado de seis dias na cidade de São Paulo junto ao prefeito Bruno Covas, o governador João Doria falou, ontem, sobre a possibilidade de decretar lockdown, caso o índice de isolamento social não aumente. De acordo com o Índice de Isolamento Social da Inloco, a taxa de isolamento no estado de São Paulo, na terça-feira, era de 41,3%. O número de casos de covid-19 no estado chegou a 69,9 mil ontem, com 5.363 mortes registradas, segundo o Ministério da Saúde. O estado lidera com folga em número de casos confirmados, com mais que o dobro do registrado no Ceará, que é o segundo colocado, com 30,5 mil.

“Evitar a medida extrema representa respeito e atitude. Mas, se nós não tivermos solidariedade, os índices crescerem ainda mais e colocarmos em risco a vida das pessoas, seremos obrigados a adotar o lockdown. Vamos fazer um esforço nesses seis dias na capital, na região metropolitana, no interior e no litoral, para evitar medidas mais duras e mais restritivas”, pediu o governador.

Aumento

Já no Pará, o decreto que determinou bloqueio total em Belém e mais nove municípios começou a valer no dia 7. Na data, o índice de isolamento no estado era de 49,1%, o número de casos era de 5.935 e contabilizavam 488 mortes. Atualmente, 17 municípios estão em suspensão total. O último índice de isolamento registrado no estado, na terça, foi inferior ao registrado no início do lockdown, chegando a 48,9%. Já o número de casos saltou para 18.135 e as mortes chegaram a 1.633, com o estado ocupando a 6ª colocação no ranking nacional.

Ainda na região Norte, o Amazonas registrou maior número de casos em municípios do interior do que na capital Manaus. No fim de abril, Manaus passou a conviver com uma crise sem precedentes que atingiu o sistema de saúde e funerário. De acordo com a Fundação de Vigilância em Saúde (FVS-AM), todos os bairros da capital têm casos de covid-19, mas há uma queda na progressão de casos. No estado, cinco cidades decretaram lockdown. Duas delas, São Gabriel da Cachoeira e Silves, anunciaram, ontem, a prorrogação da medida.

A infectologista Eliana Bicudo explica que a necessidade de lockdown existe quando a cidade ou estado está próximo a um colapso sanitário, “quando os pacientes vão começar a morrer em casa ou na rua sem assistência”. Ainda de acordo com a médica, a efetividade da medida só é percebida após, pelo menos, 14 dias da adoção efetiva. “A doença tem um tempo de incubação, ela tem um tempo para causar sintomas. Se eu fecho tudo, eu demoro 14 dias ou um pouco mais para ter impacto no número de casos”, enfatiza. Antes desse período, os novos casos confirmados podem ter sido infectados antes do lockdown.

*Estagiários sob a supervisão de Andreia Castro