Valor econômico, v.20, n.4986, 23/04/2020. Legislação & Tributos, p. E2

 

O Direito dos tempos de crise

Vicente Bagnoli

23/04/2020

 

 

A excepcionalidade dos tempos de crise permite que o Direito atue de forma mais forte e mais intervencionista

A crise é uma realidade. A pandemia da Covid-19 pode fazer com que o investimento estrangeiro direto global encolha de 5% a 15%, de acordo com um relatório da Unctad publicado em 08 de março. O órgão da ONU para comércio e desenvolvimento alerta que os fluxos podem atingir os níveis mais baixos desde a crise financeira de 2008-2009, caso a pandemia continue ao longo do ano.

O cenário negativo da disseminação do coronavírus prevê um déficit de US$ 2 trilhões na renda global. No Brasil, a projeção do PIB que no início do ano era de crescimento de 2,4%, já foi drasticamente refeita pelo Ministério da Economia, conforme divulgado dia 20 de março, em alarmante 0,02%. Mesmo que o pior seja evitado, o impacto na renda global, comparado ao que os analistas projetavam para 2020, está em torno da marca US$ 3 trilhões. Mas o efeito na economia pode ser ainda pior? A Unctad publicou uma análise em 09 de março que sugere que sim.

A preocupação com a economia é legítima e urgente, pois seus reflexos no bem-estar social são diretos. O Direito se ocupa das questões econômicas ao tomar o mercado como objeto de seu campo de atuação, pois é nele que as riquezas são produzidas, é nele que as riquezas circulam e é nele que as riquezas são repartidas. A atividade econômica é, portanto, essencial para suprir as necessidades dos indivíduos, ocorrendo por meio da legitima troca entre trabalho e consumo.

Em situação de normalidade, o mercado segue as suas regras naturais e o Direito deve assegurar que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa, promova a dignidade humana conforme os ditames da justiça social, respeitando os princípios da propriedade privada e a sua função social, livre concorrência, defesa dos consumidores e do meio ambiente, por exemplo.

Em situação de normalidade, portanto, o mercado funciona conforme organizado pelo Direito por meio das obrigações estipuladas nos contratos, das arrecadações de tributos previstos em lei, em atenção à legislação trabalhista e relações de consumo, coibindo-se abusos concorrenciais do poder econômico e por meio da regulação e fiscalização nos mercados de serviços de utilidade pública e naqueles onde a concorrência não se estabelece naturalmente. Mas em normalidade.

Em tempos de crise, para que se promova a dignidade humana em atenção aos ditames da justiça social, o Direito também é chamado a intervir no mercado, pois é no mercado, como dito, que a atividade econômica acontece e é pelo mercado que se alcança prosperidade econômica e social.

A excepcionalidade dos tempos de crise permite que o Direito atue de forma mais forte, mais intervencionista, repensando e repactuando questões contratuais, trabalhistas, tributarias, consumeristas, concorrenciais, dentre tantas outras.

Tais medidas são necessárias, pois caso contrário o mercado seguirá seu ritmo com suas leis naturais, como a oferta e procura, e as consequências certamente serão ainda mais desastrosas. Tome-se, como exemplo, a disparada do preço de álcool em gel 70% e de máscaras descartáveis de proteção em diversos estabelecimentos, ou mesmo a falta do remédio hidroxicloroquina nas farmácias, apenas pelo boato de que ele combateria o coronavírus, deixando desabastecidos diversos pacientes que realmente necessitam do medicamento.

Em tempos de guerra, como à pandemia do Covid-19, fábricas adaptam suas linhas de produção, como uma grande cervejeira no Brasil que passou a produzir álcool em gel, ou nos Estados Unidos e no Japão, onde fábricas de lingerie adaptaram suas linhas de produção para fornecer máscaras protetoras ao invés de sutiãs.

Ao redor do mundo, governos estão tomando medidas para conter o coronavírus, como isolamento/quarentena e exames rápidos de detecção de vírus, criando também verdadeiros hospitais de campanha, como em tempos de guerra.

Mas a guerra ao coronavírus revela ainda que as medidas dos governos ao redor do mundo se dão também pensando na economia, portanto, o mercado. Ajudas estatais às companhias aéreas, auxílio aos trabalhadores informais, flexibilização da jornada e contrato de trabalhos, como a Medida Provisória 927 e estímulos dos bancos dos Estados na economia, como anunciado pelo BNDES aos 22 de março com a injeção de R$ 55 bilhões. Enfim, medidas para evitar que em tempos de Covid-19 não só a saúde e o sistema hospitalar entrem em colapso, mas também os mercados.

A intervenção estatal, entretanto, deve ser muito bem avaliada, observada e monitorada. Nesses momentos de crise ganham ainda mais força a atuação de “rent seekings” para obter rendas por meio da manipulação do ambiente em que a atividade econômica ocorre ao invés de criar riquezas, apropriando-se para si ou ao seu setor de riqueza com a consequente perda para o restante da sociedade. Tais cuidados devem ser tomados, pois podem afetar diversos campos, como o laboral, consumo e concorrencial. Mas não é só. Políticos e governos oportunistas também se aproveitam do momento de crise para descumprir tetos de gastos e justificar despesas para encobrir suas incompetências.

Fato é que a crise, mais cedo ou infelizmente mais tarde, passará, mas o que for feito nos mercados poderá persistir, de modo que a calibragem da intervenção do Estado deve ser cirúrgica para manter a economia viva.

Enquanto as diversas disciplinas jurídicas estão observando cada qual a sua árvore, tentando compreender como melhor atuar diante dos problemas atuais, é o Direito Econômico que enxerga a floresta e compreende como atuar de forma coordenada, organizada e estruturada nos mercados, por meio, inclusive, das mais diversas disciplinas jurídicas.

Vicente Bagnoli é professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e advogado.

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