O globo, n. 31649, 01/04/2020. Opinião, p. 2

 

Um homem atormentado

Merval Pereira

01/04/2020

 

 

Só o futuro dirá mas, pelo pronunciamento de ontem em rede nacional de televisão, está caindo a fichado presidente Jair Bolsonaro. Com atraso, parece ter começado a se move rna direção do bom senso que a realidade está fazendo prevalecer em todo o mundo, em governos populistas de direita, como o dele e o de Trump nos Estados Unidos, e de esquerda, como o de López Obrador no México.

Pela manhã, o presidente tinha dado a entender que usaria a fala do diretor- geralda OMS, Tedros Ghebreyesus, para defender o fim do isolamento horizontal, mas teve que recuar diante do desmentido formal da Organização.

Mesmo assim, Bolsonaro sonegou frases para montar um aversão que, para os mais desinformados, parece ser uma concordância com a sua posição. Mas em nenhum momento ousou defender o fim do isolamento social, mesmo porque o número de mortes e infectados entre nós começa a crescer de maneira exponencial, e ainda nem estamos no pico da epidemia.

Cada vez mais solitário, o presidente Bolsonaro é um homem atormentado, conforme depoimento de pessoas que estiveram com ele recentemente. Alguns relatos falam em choros súbitos, e não seria estranho, pois há meses o presidente, ele próprio, já declarou que chor adurante anoite.

Reclama dos ministros, acha que a imprensa elogia Mandetta, ou Moro, ou Guedes para diminuí-lo, como se ter escolhido bons ministros não fosse uma qualidade sua. Parece sentir não estar à altura do momento. Mas, apesar do comportamento errático que frequentemente espanta ministros e assessores palacianos, Bolsonaro consegue manter um apoio na classe militar, na qual desde o começo baseou seu governo.

Militares influentes, mesmo discordando de muitas atitudes, levam em conta sua reclamação de que o Congresso e a imprensa não o deixam trabalhar, emperram suas decisões com críticas exageradas e posições radicalizadas, como se ele não fosse o primeiro a radicalizar.

A organização de seu governo abriga cerca de mil militares em diversos escalões, inclusive oito ministros, dentre eles os que têm gabinete no Palácio do Planalto. Esse aparelhamento militar da máquina estatal é consequência natural, pois Bolsonaro fez sua vida política apoiado pelas corporações militares e por membros delas mesmo fora das Três Armas, como integrantes de empresas de segurança e milicianos que a família condecorou e empregou.

Essa atitude faz com que os militares tenham pontos em comum com o presidente, mesmo quando discordam das estratégias ou atitudes. Há uma admiração pela maneira como conseguiu se eleger deputado federal por quase 30 anos e chegar à Presidência da República com apoio popular, como se esse apoio, coroado em 2018, tivesse o condão de resgatara imagem dos próprios militares.

Bolsonaro faz questão de manter essa aura de vencedor, e quando há alguma discussão mais difícil dentro do governo, ele assume a solução alegando: “Quem tem voto aqui sou eu”. Ontem, esse homem assombrado por fantasmas viu-se diante de uma situação inusitada, o combate à Covid-19, que provoca a maior crise humanitária das últimas décadas no mundo, e ad ata 31 de março de 1964, que para ele e os militares em geral, especialmente os de um ageração a indana ativa, representa um paradigma do qual in sistemem se mostra a ordem do dia anacrônica do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva.

Aluta contra o comunismo num mundo em que esse sistema político nem mesmo existem ai sé o maior elo entre os militares e Bolsonaro, e ele se vale disso para alimentar o sentimento de lealdade. O perigo de haver revoltas populares por falta de comida e dinheiro é uma ameaça que o presidente vende para justificar sua insistência contra o isolamento horizontal. O fantasma da volta de Lula e do PT, a que o próprio Bolsonaro alude volta e meia, aliado à memória do golpe de 64, é um amálgama que os une, ainda que completamente equivocado.

Bolsonaro usa essa lembrança para fazer política, pois lhe convém manter essa dicotomia do “eu contra ele ”. Mas ele, que pela manhã havia feito um comentário sobre o golpe militar dizendo que foi “o dia da liberdade”, à noite não se pronunciou sobre o tema, demonstrando, talvez pela primeira vez, que, por momentos, sabe separar o grave período porque a humanidade passa da politicagem que ontem ainda manchava seu pronunciamento com a tentativa de distorcer as palavras do diretor-geral da OMS.