Título: O poder sob o islã
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 09/12/2012, Mundo, p. 24

Especialistas alertam para o risco de a Irmandade Muçulmana utilizar a religião como piLar do governo e como meio de controle social Decreto presidencial abriria caminho para uma nova autocracia. Cidadãos não escondem medo do futuro

Hosni Mubarak governou o Egito com mão de ferro durante 29 anos, enquanto a Irmandade Muçulmana amargava a clandestinidade já havia mais de três décadas antes de o "faraó" ascender ao poder. O ditador caiu em desgraça, e a organização fun-damentalista islâmica se vingou: elegeu Moha-med Morsy para comandar o país rumo à liberdade. Mas a sede de poder falou mais alto. O novo presidente firmou um decreto no qual atribuiu a si superpoderes, provocou a ira dos opositores, lançou a nação em uma nova crise política e despertou o fantasma de uma autocracia islâmica. O povo voltou a lotar a Praça Tahrir, o marco da revolução contra Mubarak, e chegou a ameaçar uma invasão ao palácio presidencial. Somente na semana passada, pelo menos seis opositores morreram. "Não haverá retomo ao passado, mas mudanças para o futuro", prometeu Refaa Tahtawi, chefe de gabinete de Morsy, em entrevista ao siteAhram Online. O futuro que se desenha amedronta a egípcia Nathalie Azer, 27 anos. "Teríamos que deixar o país. E sei que muitos muçulmanos também o fariam. O índice de pobreza aumentaria, o fanatismo atingiria níveis máximos, não haveria qualquer tipo de liberdade. Estaríamos aprisionados em nossa própria terra", afirmou ela ao Correio, ao ser questionada sobre as conseqüências de uma islamização da política e da sociedade. Funcionária de uma confecção no Cairo, Nathalie é cristã e integra uma minoria da população—10% dos egípcios como ela são cristãos.

O medo dela tem fundamento, na opinião de analistas e de um dos mais proeminentes clérigos muçulmanos do Egito. "Essa Constituição apresenta restrições mais completas sobre os direitos do que qualquer outra que já existiu. Isso não será uma democracia que possa permitir o que Deus proíbe ou que proíba o que Deus permite", alertou o xequeYasserBorhami, vice-líder do Movimento Al-Daawa (salafista), aos demais religiosos do islã. Para o cientista político Eric Trager, especialista em partidos de opsição do Egito pelo The Washington Insütute, existe o risco de que os islamistas imponham leis restritivas à sociedade. "O mais importante é o modo com que eles têm gerenciado a transição, nem tanto a ideologia islâmica em si", afirmou à reportagem, por telefone. "Muitos não muçulmanos acusam os islamistas de reinarem por meio da Constituição e se ressentem de terem sido expurgados do rascunho da Carta Magna" acrescentou. No próximo sábado, os egípcios votarão num referendo para aprovarem ou vetarem o novo texto.

Trager não tem dúvidas de que a Irmandade Muçulmana deseja estabelecer um regime teo-crático. "Morsy pretende formar um Estado islâmico, integrado pelos mais radicais salafistas" admite. O governo religioso almejado pelo presidente e por seus aliados seria diferente do modelo iraniano — além da orientação sunita, ele estaria desprovido da figura de um líder caris -mático, como a do aiatolá Ali Khamenei.

O escritor, ativista e cientista político sírio-italiano Shady Hamadi, também alerta para o perigo de umaislamização da sociedade egípcia e de uma censura de pensamento. "A sociedade civil tomou as ruas por ver em Morsy um outro Hosni Mubarak", comenta. Ainda que duvide da transformação do Egito numa teocracia, ele vê como alarmante o fato de a Irmandade Muçul- mana ter possibilitado que membros da Mesquita de Al-Azhar participassem do processo ie-gislativo. Por décadas, a entidade atuou come cúmplice de governos autocráticos. Hamadi defende que a nova Carta Magna egípcia separe o Estado da religião. "0 conceito de Estado secular em países árabes é visto como valor ocidental. Os islamistas não o consideram reconciiiá-vel com a visão árabe"" alerta.

Fracasso

Apesar de acreditar na influência do islã sobre o governo de Morsy, o norte-americano Bruce Rutherford—cientista político da Colgate Uni™ versity (em Hamilton, Nova York) — lembra que, no caso iraniano, os clérigos religiosos detêm todo o poder político. Um cenário, segundo ele, bastante improvável no Egito. "O Egito goza de um movimento político populista, a Irmandade Muçulmana, que se apresenta como defensora dos valores tradicionais islâmicos. Ela é socialmente conservadora, mas também bem moderna/por apoiar a economia de mercado, o engajamento com o mundo externo e a participação pública na vida política", sustenta. Ao mesmo tempo, no entanto, Rutherford critica a Irmandade por ter fracassado em persuadir a minoria cristã copta e as mulheres de que respeitará seus.