O globo, n. 31683, 05/05/2020. Economia, p. 17

 

Orçamento de guerra

Geralda Doca

Gabriel Shinohara

Bruno Góes

Manoel Ventura

05/05/2020

 

 

Câmara aprova proposta que agiliza ação contra pandemia e destrava crédito 

DIVULGAÇÃO/CÂMARA DOS DEPUTADOSVotação. Texto aprovado por 481 votos a 4 ampliou a capacidade do Banco Central de atuar diretamente no mercado. Ele poderá comprar títulos públicos e privados de crédito no mercado secundário

 Depois de mais de um mês de negociações, a Câmara dos Deputados aprovou ontem, em primeiro turno e por 481 votos a 4, a proposta de emenda à Constituição (PEC) que cria o chamado Orçamento de Guerra. O texto flexibiliza temporariamente regras fiscais para facilitar gastos emergenciais durante acrise do coronavírus. Além de facilitar ações de combate à pandemia, o regime especial permitirá que o governo injete R$ 36 bilhões em fundos garantidores para destravara liberação de crédito a empresas. O projeto também abre caminho para o rep assede R $60 bilhões a estados e municípios, ainda em análise pelo Congresso.

A Câmara já havia dado aval a um aversão anterior do projeto no início de abril, masa redação foi alterada pelo Senado. P orisso, precisou passar novamente pela análise dos deputados. Até anoite de ontem, a matéria ainda precisava ser votada em segundo turno.

Um dos principais pontos da proposta é liberar o governo, temporariamente, do cumprimento da chamada regra de ouro. A trava fiscal impede que a União se endivide para pagar despesas correntes, como salários. Com o relaxamento provisório, o Tesouro Nacional pode recorrer mais livremente ao mercado financeiro para buscar recursos.

Esse é o ponto do texto que abre espaço para novos gastos, que ainda não saíram do papel. Dos R$ 36 bilhões para crédito, R$ 15,9 bilhões serão aportados no Fundo de Garantia de Operações (FGO), gerido pelo Banco do Brasil e que poderá ser usado por vários bancos no socorro a micro e pequenas empresas enquadradas no Simples Nacional. Os R$ 20 bilhões restantes serão aportados no Fundo Garantidor para Investimentos (FGI), do BNDES, para empresas de médio porte. Segundo estimativas da área econômica, a entrada do Tesouro nas operações poderá alavancar de R$ 118 bilhões a R$ 120 bilhões em empréstimos.

O Congresso já aprovou o projeto que trata dos financiamentos para micro e pequenas empresas com aval do Tesouro, mas a sanção presidencial estava condicionada à aprovação do Orçamento de Guerra. Segundo técnicos, o texto deve ser sancionado junto com a regulamentação da linha de financiamento.

Com a regra em vigor, negócios que faturam até R$ 4,8 milhões por ano terão acesso a empréstimos equivalentes a até 30% do faturamento que registraram no ano anterior. O dinheiro do Tesouro é necessário porque empresas menores não têm garantias em um momento em que bancos estão mais seletivos, por medo de calotes causados pela crise. O contato com as empresas que têm direito ao crédito será feito pela Receita Federal, que tem o cadastro do Simples Nacional, explicou um técnico.

A situação das empresas maiores é diferente. Essas companhias têm garantias, mas enfrentam problemas de fluxo de caixa. Nesse caso, os recursos federais serão um reforço a mais no sentido de estimular as instituições financeiras a ajudarem na travessia da crise.

A preocupação maior, explica um técnico, é manter viva a extensa cadeia produtiva, o que pode ser feito via financiamento de capital de giro das principais empresas. Entram no radar a Embraer, indústria automotiva, varejo, além de companhias aéreas. A avaliação de integrantes do Ministério da Economia é que está havendo uma deterioração muito rápida da atividade econômica e que, se o governo deixar a cadeia produtiva dos grandes setores morrer, a retomada ficará cada vez mais distante.

Segundo o relator da PEC, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB), a aprovação do texto também será fundamental para assegurar a liberação dos R$ 60 bilhões prometidos pela União a estados e municípios.

— A PEC é fundamental porque, neste momento, o governo precisa tomar medidas orçamentárias para auxiliar o Ministério da Saúde e combater o coronavírus. A aprovação também serve para o socorro aos estados e municípios. Só podemos votar esse auxílio com a PEC, já que haveria impedimentos para a liberação (de dinheiro) com as travas do teto de gastos e da regra de ouro — diz Hugo Motta.

MENOS AMARRAS AO BC

A proposta aprovada ontem também amplia a capacidade do Banco Central (BC) de atuar diretamente no mercado. De acordo com o texto, a autoridade monetária poderá comprar títulos públicos e privados de crédito no mercado secundário.

Antes da última votação, Motta fez duas modificações nas regras sobre a atuação da autoridade monetária. Primeiro, suprimiu a previsão de que empresas beneficiadas pelos operações realizadas pela autarquia se comprometam a manter os empregos. Além disso, retirou o trecho que especificava quais tipos de títulos privados de crédito a instituição poderá comprar. Dessa maneira, o órgão poderá atuar no mercado de maneira mais ampla.

Foram mantidas, no entanto, as restrições impostas quando a matéria foi analisada no Senado. Na ocasião, o relator do projeto na Casa, senador Antonio Anastasia (PSD-MG), estabeleceu critérios como a obrigação de que o BC só possa comprar títulos que tenham qualidade mínima aferida por agências de classificação de risco. Além disso, as instituições financeiras que venderem esses títulos para a autarquia não poderão distribuir lucros e dividendos acima do mínimo estabelecido por lei.

As mudanças envolvendo o BC foram o principal motivo de divergências e atrasaram a tramitação da PEC. A ideia foi apresentada pela autoridade monetária para possibilitar ações mais eficazes no combate aos efeitos econômicos da pandemia. O volume de recursos parados, após algumas medidas de estímulo ao crédito anunciadas pela equipe econômica, tem sido alvo de críticas, já que o dinheiro não têm chegado na ponta.

Ainda com esse objetivo, a PEC também passou a contar, desde que passou pelo Senado, com uma flexibilização da regra que proíbe que empresas com dívidas previdenciárias obtenham crédito com garantia da União.

A mudança foi proposta pelo governo para viabilizar a medida que prevê a concessão de R$ 40 bilhões em empréstimos para pagar salários de funcionários de pequenas e médias empresas. Desse montante, R$ 34 bilhões serão garantidos pelo Tesouro Nacional. Ou seja, o governo assume a maior parte do risco das operações. Para se ter uma ideia do efeito do impedimento constitucional, só nos estados do Rio e de São Paulo, há mais de 530 mil inscrições na dívida ativa por causa de débitos previdenciários.

O QUE O PROJETO PREVÊ

1 União fica autorizada a descumprir a chamada regra de ouro

A regra fiscal estabelece que a União não pode se endividar para pagar despesas correntes, como salários e aposentadorias. Com a aprovação do projeto do Orçamento de Guerra, a União poderá descumprir essa regra durante o estado de calamidade pública, que está previsto para acabar no fim deste ano.

2 Banco Central poderá comprar títulos públicos ou de empresas

O Banco Central poderá comprar títulos públicos e privados no mercado secundário, ou seja, somente os que já foram negociados pelo Tesouro ou empresas. O texto aprovado restringe as operações, ao exigir boa avaliação por agências de risco. Mas foi retirado o trecho que especificava quais papéis poderiam ser negociados, o que amplia o poder do BC.

3 Transparência em relação ao uso dos recursos

As despesas para o enfrentamento ao coronavírus devem estar em programações orçamentárias específicas e na prestação de contas do presidente da República. Em outro ponto, o presidente do Banco Central também deverá prestar contas ao Congresso sobre as operações da autoridade monetária.

4 Permite a contratação de pessoal, serviços e produtos para enfrentar a crise

A proposta também prevê contratações simplificadas de pessoal, serviços e produtos. O processo deve respeitar, quando possível, a competição e a igualdade de condições entre concorrentes. Para a distribuição de equipamentos e insumos de saúde, a União deverá publicar os critérios utilizados na decisão de qual estado ou município receberá os produtos.