Título: Improviso na capital do país
Autor: Mariz, Renata
Fonte: Correio Braziliense, 22/12/2012, Brasil, p. 10
DF abriga, em ala no presídio feminino, doentes mentais que cometeram crimes. Celas superlotadas colocam lado a lado pessoas com variados distúrbios. Falta de espaço e de tratamento adequado levaram MP a pedir a interdição do local
RENATA MARIZ
Doentes mentais considerados pela Justiça inimputáveis (isentos de pena no caso dos crimes cometidos), mas que recebem uma ordem de tratamento psiquiátrico, a chamada medida de segurança, vivem na base do improviso no Distrito Federal. Ao contrário de 17 estados que mantêm hospitais de custódia para abrigar essa população, conforme manda a lei, a capital federal separou uma ala para recebê-la dentro do presídio feminino, localizado no Gama. Em oitos celas marcadas pela superlotação ficam homens com os mais diferentes distúrbios, de esquizofrenia e psicose a transtornos da sexualidade e retardo mental. O Ministério Público do DF ajuizou ação pedindo a interdição do local.
A ocupação média da ala de tratamento psiquiátrico é de oito a 10 homens por cela. Mulheres com medidas de segurança no DF ficam com presas do regime comum. Diretora do presídio feminino, Deuselita Pereira Martins reconhece o absurdo da situação. “A lei é clara, diz que tratamento psiquiátrico não deve ser feito dentro de presídio. Mas por uma questão estrutural, de facilidade para o deslocamento, para a custódia, a ala acabou instalada aqui”, afirma. Ela conta que a falta de separação adequada entre os internos, por distúrbios, resulta em graves problemas, como brigas, extorsões e estupros. “Enquanto outros estados estão pensando em como acabar com seus hospitais de custódia, nós ainda nem chegamos a ter um.”
Durante conversa com a reportagem, Francisco (nome fictício), há 11 anos no estabelecimento, reclama com o agente penitenciário dos colegas de cela. “Eles ficam fazendo zoeira, tentação. Não tá dando certo, aquela tá cheia, quero trocar”, afirma o homem, detido por estupro. Com retardo mental evidente que deixa sua fala quase incompreensível em determinados momentos, o piauiense divide a Cela 2 da ala psiquiátrica com oito homens. Com orgulho, conta que trabalha na unidade recolhendo o lixo. E diz que gosta de pintar. De novo, vira-se para o agente: “Não vamos mais pintar, não?”.
Francisco representa uma minoria dentro da ala psiquiátrica do DF. Crimes sexuais foram cometidos por 11% dos internos, de acordo com estudo financiado pelo governo federal sobre manicômios judiciários no país. O maior percentual na capital é o de furtos e roubos, praticados por 47% dos doentes mentais que cumprem medida de segurança. O índice supera a média das outras unidades da Federação, onde 29% cometeram delitos contra o patrimônio. Enquanto nos demais estados prevalecem homicídios ou tentativas, cometidos por 44% dos internos, no DF tais crimes foram praticados por 32% da população com distúrbio mental.
Álcool e drogas Em relação aos transtornos mais diagnosticados, o Distrito Federal também se diferencia do perfil nacional. Chama atenção a quantidade de internos com problemas decorrentes do uso de álcool e drogas. Eles representam 21% do total da população que cumpre medida de segurança aqui. O índice é praticamente o dobro do verificado no resto do país, 11%. Tanto aqui quanto fora, porém, a esquizofrenia fica em primeiro lugar no rol de problemas psiquiátricos dos loucos infratores — 32% dos internos no DF têm esse complexo problema mental de causas ainda não completamente esclarecidas. A média nas outras unidades da Federação é de 42%.
Três em cada 10 internos do Distrito Federal estão com exame de cessação de periculosidade, necessário para determinar a desinternação, atrasados. A legislação estabelece que o teste seja feito anualmente, depois de finalizado o prazo de tratamento obrigatório, que varia de um a três anos. Mas, no DF, a população que cumpre medida de segurança chega a esperar 26 meses. Ou pouco mais de dois anos.
No momento em que a pesquisa do governo federal foi realizada, havia três pessoas com sentença judicial determinando a saída, mas que permaneciam no local. “Muitas vezes, temos dificuldade de encontrar parentes, familiares. E se a família não pode receber, deveria ter casas de passagem até que a pessoa seja completamente desinternada, mas não há vagas disponíveis no DF”, afirma Deuselita, diretora do presídio feminino.
Sem recursos para investir
Dos cofres do governo federal, que financiou o primeiro censo da população em manicômios judiciários no Brasil, não saiu um único centavo para o setor no último ano. Segundo Mara Fregapani, coordenadora de Reintegração Social e Ensino do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) do Ministério da Justiça, o que a pasta tem feito é discutir um fluxo de acompanhamento dos processos, e buscado entendimentos com o Judiciário e com as áreas da Saúde e da Assistência Social.
“Não temos uma receita para dizer como enfrentaremos o desafio enorme dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico no país”, afirma Mara. Segundo ela, a pesquisa mostrou os reais problemas do sistema que precisam ser enfrentados. “Um deles é a desinstitucionalização das pessoas com muito tempo. Estamos em uma série de discussões para verificar como investir. Mas sabemos que, até pela lei da reforma psiquiátrica, não investiremos em reforma ou construção de unidades, mas sim na rede que possa atender os pacientes”, afirma.
Apesar de não ter havido um investimento pontual nos manicômios judiciários, Mara ressalta que “as coisas estão andando”, ao se referir às discussões feitas recentemente por um grupo de trabalho composto de integrantes do Conselho Nacional de Justiça, Ministério do Desenvolvimento Social, entre outros órgãos. Um dos dados apresentados na pesquisa que surpreendeu Mara foi o longo tempo de internação dos doentes mentais que cometem crimes no Brasil. “Ficam muito mais tempo do que a própria pena prevista para o crime que cometeram. É chocante, sem dúvida”, diz. (RM)
Tratamento inexistente
Tramita na Justiça desde maio deste ano uma ação pedindo a interdição da ala de tratamento psiquiátrico localizada no presídio feminino do Distrito Federal. O Ministério Público (MP) do DF, autor da ação, enumera uma série de irregularidades e violações cometidas nas celas que abrigam os doentes mentais. “Essas pessoas foram absolvidas pela Justiça. A condenação, se é que podemos chamar assim, determina que façam tratamento. Mas, naquelas condições, não existe como receber uma atenção integral, conforme determina a lei”, explica a promotora Helena Rodrigues Duarte, uma das autoras da ação. O processo ainda não foi julgado.
Além da superlotação, o MP denuncia a falta de espaço para atendimentos de saúde, como enfermarias ou salas de emergência. A ausência de uma separação adequada, por diagnósticos, é outro ponto relatado no processo. “Há, inclusive, internos com transtorno de personalidade antissocial (psicopatas) junto aos demais segurados”, diz o texto da ação. Em relação aos recursos humanos, o MP considera a situação “alarmante”. “A medicação é distribuída por agentes penitenciários, que não possuem conhecimentos específicos, e não por profissionais de enfermagem (…) Na verdade, o agente entrega a medicação durante o expediente e o segurado fica responsabilizado por ingerir no horário adequado”, diz o processo. A falta de planos individuais de tratamento e de residências terapêuticas no DF para acolher pacientes sem referência familiar com periculosidade já cessada são outras críticas do MP.
“É um sistema perverso que penaliza o sujeito por não ter dinheiro, por não ter família. Porque se você tiver dinheiro, vai para uma clínica particular cumprir a medida de segurança”, afirma a promotora Helena. Elias Abdalla, pós-doutor em psiquiatria forense pela Universidade de Londres e coordenador da área na Associação Brasileira de Psiquiatria, iguala os manicômios judiciários a uma prisão perpétua na medida em que os cuidados são negligenciados. “Uma pessoa com doença mental pode procurar um tratamento. Lá dentro, ela está impossibilitada de buscar isso, vai ter que esperar que ele seja ofertado”, diz.