Valor econômico, v.21, n.5015, 04/06/2020. Política, p. A10

 

"Forças Armadas não são milícias de facção partidária"

Isadora Peron

Luísa Martins 

04/06/2020

 

 

Em "live" promovida ontem pelo Valor, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), classificou como "irresponsável", "loucura" e "tese de lunático" a interpretação do presidente Jair Bolsonaro e aliados de que o artigo 142 da Constituição Federal pode ser usado para legitimar uma eventual intervenção militar e conter o que consideram excessos do Poder Judiciário. Em meio à uma crise entre os Poderes, o ministro defendeu ainda que as "Forças Armadas não são milícias de uma dada facção partidária".

Durante a entrevista, o ministro rebateu uma declaração do procurador-geral da República, Augusto Aras, que defendeu que o artigo 142 da Constituição prevê que, em caso de interferência, os militares devem garantir o "funcionamento dos Poderes constituídos". "Eu acho algo completamente irresponsável. Vou repetir: é uma interpretação irresponsável aquela que atribui às Forças Armadas o papel de interpretar a Constituição."

Segundo ele, o Supremo é o "guardião da Constituição". O ministro avalia ainda ter se instalado no país uma "grande loucura, uma grande confusão" em relação a esse assunto. "Recentemente eu disse que essa tese é uma tese de lunáticos. É uma viagem de lunáticos. O artigo 142 tem uma discussão muito importante que é a missão das Forças Armadas para proteger poderes constitucionais e assegurar a lei e a ordem a pedido de um dos Poderes, mas é só isso", disse.

Segundo Gilmar, a primeira vez que ele ouviu falar sobre essa tese do artigo 142 foi durante uma conversa com o então comandante do Exército, o general Eduardo Villas Bôas. O ministro contou que, dias antes, o professor Ives Gandra teria ido ao Forte Apache, como é chamado o Quartel-General do Exército, e lançado essa nova interpretação. "O general Villas Bôas me perguntou e eu disse que isso não estava em lugar nenhum", contou.

Ele, no entanto, afirmou que foi essa interpretação que fez o então comandante do Exército sugerir, nas redes sociais, que poderia haver uma intervenção militar, na véspera do julgamento de um habeas corpus impetrado pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no STF.

Em mais um movimento do governo para distensionar o clima com o Supremo, o ministro contou também que teve uma conversa com o presidente no sábado e ponderou que ele deveria evitar a participação nas manifestações que pedem o fechamento do STF e do Congresso. Ele também repudiou o fato de o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, ter sobrevoado, ao lado de Bolsonaro, um protesto no fim de semana e cobrou uma posição da cúpula militar. "Eu acho que, inclusive, os militares têm que ter muito cuidado quando participam dessas manifestações. Acho até que os chefes das Forças Armadas deveriam se pronunciar sobre isso."

O ministro também defendeu um "severo controle" na liberação de posse e porte de armas, na linha contrária do que pretende o governo. "Isso nós temos também que repudiar claramente. Essa ideia de armar pessoas para atingir outras, eu acho que nós devemos ser muito severo no controle de armas, porque de fato pode, daqui a pouco, ocorrer um incidente grave", disse.

Segundo ele, o direito da livre manifestação é garantida pela Constituição, mas sem agressões. "Agredir a Constituição não pode. Agredir pessoas não pode. Não pode o presidente, não pode seu mais ferrenho militante, não pode o ministro da Defesa. Não podemos nós os ministros do Supremo. Ninguém pode. Isso precisa ser dito de maneira muito clara. Isso é parte de um pacto civilizatório."

O ministro também demonstrou preocupação com o fato de manifestantes pró e contra governo poderem entrar novamente em conflito, como aconteceu no fim de semana, em São Paulo. "Nós queremos essa confusão no país? Nós queremos que haja milícias pró-governo e milícias contra o governo? Que esses grupos se armem em nome de alguma causa?", questionou.

Gilmar disse ainda que, apesar das ameaças públicas, o presidente vem respeitando as determinações da Corte e lembrou que o descumprimento de uma decisão judicial é crime de responsabilidade, que pode levar ao impeachment.

O ministro também defendeu o inquérito das "fake news", que apura ofensas e ameaças a integrantes da Corte. "Tenho impressão de que o inquérito foi mal compreendido no início."

Segundo ele, um "grupo barulhento" de procuradores fez com que a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, se manifestasse contra a investigação, o que fez com que parte da mídia comprasse a ideia de que o inquérito era ilegal.

"Eu acho que hoje as pessoas estão entendendo a importância do inquérito e notando a sua validade", afirmou.

Ele afirmou, no entanto, que não sabe se as provas colhidas pelo inquérito serão compartilhadas com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), para serem usadas nas ações que pedem a cassação do mandado de Bolsonaro e do vice, Hamilton Mourão. "Não sei como o TSE vai proceder em relação a esse tipo de matéria, mas certamente procederá com o devido cuidado. Talvez nem ache que o TSE está voltado para uma eventual cassação de chapa, não é disso que se cuida."

Gilmar também minimizou as declarações recentes de Bolsonaro sobre a possibilidade de indicar Aras para uma vaga no Supremo. Cabe ao PGR apresentar uma eventual denúncia contra o presidente. "Eu não atribuo maior significado a esse gesto. O presidente fala, às vezes, para dar pista e, às vezes, para servir de despiste", disse, lembrando que Bolsonaro já afirmou que indicaria o ex-ministro Sergio Moro para a vaga que abre em novembro, e depois falou em um nome "terrivelmente evangélico".

"O presidente tem feito um pouco de esconde-esconde com essa temática e a gente, na verdade, não pode se fiar."

O ministro avaliou ainda que a postura do presidente enfraquece o isolamento social, apesar das recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS). Ele também voltou a defender a necessidade de uma atuação integrada de todos os entes da federação. "O governo precisa fazer mais no campo administrativo, ter um comitê de crise. E tenho impressão que [a reabertura] tem que ser subsidiada com expertise, critérios técnicos. Isso precisa ser discutido e recondicionado", frisou.

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Bolsonaro e Mourão ameaçam manifestantes contra o governo

Cristiane Agostine

04/06/2020

 

 

O presidente Jair Bolsonaro e o vice-presidente da República Hamilton Mourão reagiram com ataques aos atos de rua em defesa da democracia organizados por grupos da sociedade civil no fim de semana passado, e fizeram ameaças de forte repressão aos manifestantes contrários ao governo.

Com a perda da hegemonia dos grupos bolsonaristas nos protestos de ruas durante a pandemia, Bolsonaro classificou como "marginais" e "terroristas" os integrantes dos chamados grupos antifascistas que estão promovendo protestos contra o seu governo. "Não podemos deixar que o Brasil se transforme no que foi há pouco tempo o Chile. Não podemos admitir isso daí. Isso não é democracia nem liberdade de expressão. Isso, no meu entender, é terrorismo", afirmou o presidente, em gravação divulgada por seus apoiadores.

O vice-presidente deixou de lado o tom moderado e classificou como um "abuso" os protestos contra o governo. Mourão chamou manifestantes de "deliquentes" ligados "umbilicalmente ao extremismo internacional". Em artigo publicado ontem no jornal "O Estado de S. Paulo", o vice-presidente estimulou a repressão aos atos, ao afirmar que "baderneiros são caso de polícia, não de política" e que "devem ser conduzidos debaixo de vara às barras da lei".

Para Mourão, os atos realizados no fim de semana por grupos da sociedade civil e torcedores de diferentes clubes de futebol em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, em defesa da democracia e contra o autoritarismo e o governo, não são, na verdade, para defender a democracia.

"Baderneiros são caso de polícia, não de política", afirmou Mourão no artigo. "Portanto, não me dirijo a eles, sempre perdidos de armas na mão, os que em verdade devem ser conduzidos debaixo de vara às barras da lei. Dirijo-me aos que os usam, querendo fazê-los de arma política; aos que, por suas posições na sociedade, detêm responsabilidades institucionais".

Sem mencionar o protesto de bolsonaristas em frente ao Supremo Tribunal Federal no domingo, portando armas e tochas, o vice-presidente disse que a "legítima defesa da democracia" deve passar pela tolerância e diálogo.

Mourão criticou também o ministro Celso de Mello, do STF, por ter comparado a situação política do país à da Alemanha nazista. "Tal tipo de associação, praticada até por um ministro do STF no exercício do cargo, além de irresponsável, é intelectualmente desonesta." (Com Folhapress)

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Agenda "bolsonarista" atrapalha união das oposições 

Cristian Klein

04/06/2020

 

 

Ex-ministro da Educação no governo Dilma Rousseff, o filósofo e professor da USP Renato Janine Ribeiro, 70 anos, recorre à famosa passagem do romance “Por quem os sinos dobram” para ilustrar o dilema que vive hoje progressistas e liberais, democratas de esquerda e de direita, petistas e antipetistas, que buscam superar as diferenças para formar uma frente ampla de oposição ao presidente Jair Bolsonaro.

Em sua opinião, no entanto, a recomendação deve ser oposta à da obra na qual o escritor americano Ernest Hemingway sugere que, numa guerra, é mais importante quem está do seu lado do que a própria causa por que se luta. “Nesse momento, eu diria que é quase o inverso. É importante ter do seu lado gente com quem você não concorda. No Hemingway, o mais importante é estar do seu lado gente que você admira, que são seus aliados. Mas hoje o crucial é expandir a oposição ao Bolsonaro, juntando gente em quem você não confia, de quem se tem mágoa, porque sabemos que é necessário uma aliança para mudar o governo”, defende.

Signatário do manifesto intitulado “Estamos Juntos”, que ganhou adesão de antigos adversários políticos e centenas de milhares de apoiadores desde o último fim de semana, Janine Ribeiro destaca a relevância do engajamento, ainda que tardio, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), num momento em que as instituições, a seu ver, reagem muito pouco ao avanço antidemocrático do bolsonarismo.

Afirma que a trincheira contra os abusos do governo federal, até agora, vinha sendo ocupada quase que exclusivamente por grupos de esquerda e “por alguns indivíduos” como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello. “O Rodrigo Maia tem colocado limites no Bolsonaro, mas o presidente do Senado [Davi Alcolumbre, DEM-AP], não. O Celso de Mello e o Alexandre de Moraes [ministro do STF] colocam, mas o presidente do Supremo, Dias Toffoli, não. Esse pessoal no poder precisa ser limitado”, analisa.

Para o ex-ministro, que não tem filiação partidária, o campo progressista não pode exigir perfeição dos antibolsonaristas. O mais importante é aumentar a base política contra o governo federal até porque, afirma, “a esquerda está fraca e não vai conseguir tirar Bolsonaro do poder sem se aliar com outros setores”. A adesão de FHC é bem-vista, embora receba considerações. “Só agora o Fernando Henrique disse uma coisa mais severa contra Bolsonaro. É um cara muito difícil de entender. Foi muito silencioso. Mas teria grande chance de ser líder do movimento e tem compromisso com a história do Brasil. Entre os ex-presidentes é o que está mais preocupado com a imagem que terá nos livros de história”, diz o filósofo.

Janine Ribeiro lembra que o manifesto foi assinado pelo ex-prefeito de São Paulo e derrotado à Presidência no segundo turno de 2018, Fernando Haddad, e pelo deputado federal Henrique Fontana (PT-RS), expoentes do petismo. Mas considera compreensível a recusa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em cerrar fileiras ao lado de desafetos, apesar da necessidade de união. Afirma que ele foi vítima de “todo esse procedimento que culminou no Bolsonaro e no [ex-juiz] Sergio Moro, no golpe parlamentar que levou ao impeachment de Dilma, e na prisão de Lula”. Em sua opinião, há razões suficientes para que o petista não se sinta confortável de estar perto de FHC ou de Moro, que o condenou e é apontado como um presidenciável em 2022.

“O que se fragmentou a partir do PSDB é muito simpático ao Moro e ao [ministro da Economia] Paulo Guedes. Então, você tem uma direita brasileira que toparia uma espécie de bolsonarismo sem Bolsonaro”, diz. O ex-ministro afirma que isso torna a aproximação muito difícil e acrescenta: “Como vai fazer uma aliança entre direita e esquerda, com reformas, reduzindo salários? Isso não dá. Quando o Lula diz que não tem nenhum direito trabalhista sendo considerado no manifesto, ele tem razão. Isso me leva a considerar que nenhuma central sindical deveria apoiar o manifesto”.

Ainda assim, argumenta Janine Ribeiro, seu apoio ao “Estamos Juntos” e a outros abaixo-assinados - “Assinaria quantos viessem - leva em conta a urgência do momento e as ameaças nem tão veladas de uma intervenção militar. “O Brasil está vivendo uma situação semidemocrática ou semiditatorial. O governo viola a lei e a Constituição o tempo todo, e o Legislativo e o Judiciário reagem muito pouco”, critica.

O ex-ministro lamenta ainda a existência de um empresariado muito condescendente com Bolsonaro, mesmo com as notícias de que o capital internacional está se afastando cada vez mais do país. “Parece que não tem noção. Mas aqui temos um capitalismo que funciona em busca da proteção do governo, apesar da agenda supostamente liberal”, diz.