O globo, n. 31686, 08/05/2020. Especial Coronavírus, p. 4

 

Pressão entre poderes

08/05/2020

 

 

Com mortes em alta, Bolsonaro constrange Supremo por reabertura da economia

MARCOS CORREA/PRVisita surpresa. Dias Toffoli e Bolsonaro após reunião no Supremo: presidente levou comitiva de empresários para encontro com o presidente da Corte sem combinar e gerou incômodo no tribunal
 

 

Enquanto o Brasil registrou mais 610 mortes por Covid-19,como total de óbitos chegando a 9.146 e o número de infectados a 135.106, o presidente Jair Bolsonaro reuniu-se com um grupo de empresários e os levou a pé até o Supremo Tribunal Federal (STF) para defender a necessidade da retomada da economia e o relaxamento do distanciamento social. Sem combinação prévia, o presidente sugeriu aos visitantes que fossem à Corte caminhando pela Praça dos Três Poderes, o que provocou aglomeração no trajeto.

A visita surpresa incomodou o presidente do STF, Dias Toffoli, que recebeu a comitiva. Ministros do tribunal consideraram a atitude “inadequada” e uma tentativa de constranger a Corte.

Ao longo do percurso, Bolsonaro chegou a se irritar quando um jornalista perguntou se o objetivo da visita era “pressionar” o STF, mas, durante e depois da reunião, deixou claro que o Executivo vai agir para forçar uma mudança na política de isolamento social. Ontem, ele já editou um decreto que amplia o número de atividades consideradas essenciais.

Durante a reunião no STF, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que o presidente teve a ideia de ir ao STF para “compartilhar” o relato dos empresários. No fim do dia, o Jair Bolsonaro, presidente ministro da Casa Civil, Braga Netto, negou que o ato tenha sido de “pressão”.

— Devemos nos preocupar com avida, sim, mas também com empregos, porque a economia é vida. Um país onde a economia não anda, a expectativa de vida vai lá para baixo, o IDH também —disse Bolsonaro, que citou a responsabilidade dos Três Poderes na crise. —Não compete ao Executivo isoladamente, ao Legislativo ou ao Judiciário.

Ao sair da reunião, o presidente disse que a indústria está “na U TI” eque não há mais espaço para“postergar” are abertura das atividades econômicas. Na conversa no STF, Guedes ressaltou que empresários tem relatado sinais de colapso.

—Agora o sinal que nos passaram é que está difícil, economia está começando a colapsar, aí nós não queremos o risco de virar uma Venezuela, risco de virar sequer de virar uma Argentina, que entrou em desorganização, inflação subindo, todo aquele pesadelo de volta —disse o ministro.

Synésio Batista da Costa, presidente da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), disse que haverá “morte de CNPJ” se a indústria não conseguir voltar plenamente.

—O que a gente não queria era por conta de ter estado junto no combate da pandemia, o meu coração está batendo a 40 eu não consigo retomar. Os funcionários caem todos na nossa folha e eu tenho um inimigo lá fora, que é meu adversário comercial prontinho para suprir o mercado inteiro e então haverá morte de CNPJ —disse.

 INCÔMODO NA CORTE

A visita incomodou Toffoli. Segundo relatos feitos ao GLOBO, o presidente do STF viu o movimento como uma tentativa de Bolsonaro de constranger a Corte, transferindo ao tribunal responsabilidade pelo impacto econômico da pandemia. A pessoas próximas, no entanto, o presidente do Supremo disse ter considerado frustrada a investida.

A avaliação na presidência do STF é que, ao falar da criação de um gabinete de crise, coordenado pelo Executivo, Toffoli conseguiu devolvera competência da gestão do combate e dos impactos da Covid-19 a Bolsonaro.

Num gesto de insatisfação, o presidente da Corte também fez questão de ressaltar que o planejamento para a retomada da economia deve ser acontecer por meio do diálogo entre Poderes, estados e municípios. Durante toda a crise, Bolsonaro tem criticado medidas restritivas adotadas por governadores.

—Penso que é fundamental esse trabalho, diálogo, essa coordenação para que nós possamos pensar na retomada. Se for ver, as pessoas já estão saindo às ruas, já está chegando a uma situação em que as pessoas querem sair. Uma saída coordenada é fundamental, coordenação com estados e municípios —disse Toffoli.

Para um ministro ouvido pelo GLOBO, o ato foi uma tentativa deBol sonar o dividir com o Judiciário a responsabilidade por eventual recessão. Esse ministro alertou que o Supremo não é um órgão de consulta prévia, mas sim a instância que julga posteriormente a legalidade de atos do presidente, se acionado. E que a Corte vai levar em conta a posição da ciência e das autoridades sanitárias se for instado a decidir.

Outro ministro considerou inapropriada a decisão de Bolsonaro de transmitir a reunião ao vivo. Já o ministro Marco Aurélio Mello não viu problema no gesto.

— Minha preocupação é apenas uma: se era de boa qualidade o café servido ao presidente — disse, em tom de brincadeira.

 FUTURO DA INDÚSTRIA

Um dos empresários da comitiva contou que o objetivo da reunião com o presidente e Guedes, no Planalto, era reivindicar medidas que tornem a indústria brasileira mais competitiva após a reabertura da economia, além de discutir como conduzira reabertura. A ideia era ter uma estratégia pronta para ser implementada logo após o pico da pandemia.

Sem resposta a esses pleitos, foi o próprio presidente quem sugeriu que todos caminhassem até o Supremo e apresentassem o quadro negativo da economia ao STF. Bolsonaro pediu a audiência a Toffoli durante a reunião, contou o empresário, que foi surpreendido coma decisão do presidente.

— Foi uma surpresa. Sabemos que o STF não pode tomar as medidas que a indústria precisa para ser mais competitiva —disse o empresário, que preferiu não se identificar.

No final do dia, Bolsonaro voltou a defendera reabertura do comércio. Em tom irônico disseque vai cometer um “crime” no final de semana porque promoverá um churrasco para 30 convidados.

—Estou cometendo um crime. Vou fazer um churrasco no sábado aqui em casa. Vamos bater um papo, quem sabe uma “peladinha”, alguns ministros, alguns servidores mais humildes que estão do meu lado—contou na entrada do Palácio da Alvorada. (Marco Grillo, Gabriel Shinohara, Carolina Brígido, Thais Arbex, João Sorima Neto, Mariana Barbosa e Rafael Walendorff )

 “Devemos nos preocupar com a vida, sim, mas também com empregos, porque a economia é vida.”

“Uma saída coordenada é fundamental, coordenação com estados e municípios”

Dias Toffoli, presidente do STF