O globo, n. 31687, 09/05/2020. Especial Coronavírus, p. 6

 

Bloqueio total imediato

Renato Grandelle

09/05/2020

 

 

Na véspera do churrasco prometido por Bolsonaro, óbitos disparam no país
O número de mortos pela Covid-19 disparou ontem, e o país já contabiliza 9.897 óbitos pela doença. Em sete estados, a falta de leitos hospitalares e a elevada taxa de contágio indicam que a forma mais eficiente de se conter o avanço da tragédia seria a adoção imediata do chamado lockdown, quando apenas serviços essenciais seguem abertos. Os governadores do Rio e de São Paulo prorrogaram as medidas de isolamento social até o dia 31 deste mês, e o governo fluminense já elabora uma proposta de restrição ampla da circulação de pedestres e veículos. Com crescimento acelerado de mortes, o Rio se tornou a capital com maior letalidade.

Sete estados brasileiros têm o sistema de saúde estrangulado pela falta de leitos hospitalares e acumulam condições que tornariam o lockdown a política mais eficiente contra a Covid-19, segundo levantamento do GLOBO a partir de dados fornecidos pelas secretarias estaduais. São eles: Amazonas, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo —todos com mais de 80% das vagas de UTI ocupadas. O estado com maior taxa de ocupação é Pernambuco, com 98% dos leitos de unidades intensivas usados por pacientes com o novo coronavírus. Além das vagas escassas, o Brasil ainda não conseguiu reduzir a taxa de contágio, com cada contaminado transmitindo a doença para quase três pessoas, segundo dados do Imperial College — número que também deve ser considerado para tomada de medidas mais drásticas. Ontem, o Brasil bateu recorde de mortes registradas em 24 horas: 751 óbitos, além de 10.222 novos casos. O país acumula 9.897 mortes e 145.328 diagnosticados. Mesmo diante da escalada dos números e da necessidade de medidas de isolamento, defendidas por especialistas, o presidente Jair Bolsonaro reforçou que a responsabilidade pela manutenção do fechamento do comércio é de governadores e prefeitos. —Sabe que a decisão de fechar o comércio é dos governadores e prefeitos, não é minha. Se fosse minha, eu teria uma posição um pouco diferente da que eles estão tomando aí. Se dependesse de mim, grande parte já estaria trabalhando — disse Bolsonaro a apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada. Anteontem, o presidente já havia dito que planeja fazer, hoje, um churrasco para 30 convidados no Palácio da Alvorada, contrariando as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do próprio Ministério da Saúde.

— Estou cometendo um crime. Vou fazer um churrasco no sábado aqui em casa. Vamos bater um papo, quem sabe uma "peladinha", alguns ministros, alguns servidores mais humildes que estão do meu lado — contou a repórteres. Um estudo publicado ontem pelo Imperial College, de Londres, apontou que o surto do novo coronavírus no Brasil apenas começou e que, embora as medidas de distanciamento tenham diminuído a disseminação, a situação irá piorar caso não sejam adotadas formas mais rígidas de isolamento. Segundo o estudo, a doença ainda está fora de controle no Brasil.

"Em nenhum estado do Brasil nossos resultados indicam que a imunidade de rebanho está próxima de ser atingida, sublinhando o estágio inicial da epidemia no Brasil atualmente e a possibilidade de a situação piorar, a não ser que outras medidas de controle sejam adotadas", afirma o estudo. Adotado como última cartada em países como França, Itália e Espanha, o lockdown é vistocomoumaradicalizaçãodas medidas de isolamento social, uma vez que a quarentena decretada após a chegada da Covid-19 não obteve a adesão esperada da população. No Brasil, segundo o Imperial College, cada infectado transmite a doença para três pessoas.Éomaioríndicevisto no levantamento, realizado em 48 nações. Se menos pessoas estão na rua, há menos possibilidade de contágio. São Luís, Fortaleza e Belém iniciaram nesta semana o confinamento obrigatório da população, e governantes cogitam aplicar multas em indivíduos que circulam sem obedecer as restrições previstas nos decretos municipais. Niterói adotará a medida na segundafeira. No lockdown, é proibida asaídadeveículosparticulares e o funcionamento de serviços não essenciais —entre os permitidos estão supermercados. O confinamento tem sido visto como tentativa de remediar

o quadro caótico provocado pelo coronavírus nos hospitais. No estado do Rio, que cogita aderir ao lockdown, 353 pacientes da rede pública com suspeita ou diagnóstico aguardam transferência para UTIs, que podem ser reguladas para as diferentes redes, seja ela municipal, estadual ou federal. —Hoje, a fila para a UTI é a fila para o enterro — afirma o oncologista Daniel Tabak, um dos membros da comissão: — Nossa rede hospitalar não dá conta dos casos, vemos pacientes deitados em maca nos corredores dos hospitais públicos, e muitas pessoas morrem em casa, sem ter feito um teste que

apontasse a doença. Mas como vamos impedir as pessoas de circularem nas ruas se não houver como garantir sua subsistência? Edison Bueno, chefe do Departamento de Saúde Coletiva da Unicamp, também lamenta o atraso no combate ao coronavírus, inflado, em muitos casos, pelo negacionismo de teorias científicas. O confinamento pode ser uma saída para localidades onde mais de 80% dos leitos hospitalares estão ocupados, diz ele. Essa política, no entanto, demora a colher resultados e, por isso, pode enfrentar resistência da população: —As pessoas que foram infectadas recentemente demoram de duas a três semanas para desenvolver os sintomas da Covid-19, e depois disso podem ser internadas, ficando até um mês no hospital. Se o confinamento já tiver sido instituído, a população pode ver esses casos e pensar que aconteceram enquanto ela estava trancada, então vai achar que o lockdown não está dando certo.

 10 MILHÕES DE INFECTADOS

A precária infraestrutura hospitalar do país foi apontada em um estudo publicado no início do mês na revista "Science of Total Environment". De acordo com o levantamento, 69% dos municípios não terão leitos suficientes para receber os pacientes infectados pelo coronavírus,principalmentenas regiões Norte e Nordeste. O estudo considerou um cenário em que 0,2% da população do país foi diagnosticada com o vírus, o mesmo percentual usado nas pesquisas realizadas na China. Isso significa que 10 milhões de casos seriam confirmados no Brasil se nenhuma medida for tomada — ainda assim, haveria subnotificação. Para avaliar o impacto do coronavírus em cada município, a pesquisa levou em conta fatores como tamanho do comércio e concentração populacional. Depois, os dados foram cruzados com o número de leitos. A partir daí, foi possível calcular o déficit de vagas nos hospitais. Coautor do estudo, Weeberb Réquia, professor da Escola de Políticas Públicas e Governo da FGV-DF, ressalta que há duas formas de controlar a pandemia no país: o isolamento social e o investimento em saúde. Ele opta pela segunda medida, por considerá-la menos "dolorosa" à população. 

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Rio, que estuda barreiras, e SP estendem quarentena

Silvia Amorim

Tatiana Furtado

09/05/2020

 

 

Entre medidas em análise por Witzel, estão fechamento de estradas e necessidade de autorização para pessoas saírem às ruas
O Rio de Janeiro, estado com o segundo maior número de casos de Covid-19, já elabora uma proposta de lockdown, o bloqueio completo. Em ofício enviado ao Ministério Público, o governador Wilson Witzel afirmou que estão em estudo medidas como barreiras em estradas; a criação de uma autorização para as pessoas circularem nas ruas; e a proibição de carros particulares nas vias, com algumas exceções. No documento, ele não especifica quando os bloqueios poderiam ser implementados nem sua duração. Ontem,tanto Witzel quanto o governador de São Paulo, João Doria, prorrogaram as restrições de deslocamento até o dia 31 de maio. Ontem, no Rio, várias lojas, de áreas não essenciais, abriram em bairros como Tijuca e Catete. Doria descreveu o cenário como "desolador" e não descarta um lockdown. A previsão é que o estado chegue a 100 mil casos e 11 mil mortes até o fim do mês. —Nosso compromisso é salvar vidas. Se tivermos que endurecer, assim o faremos — afirmou Doria. No Rio,Witzel reconheceu a dificuldade de atender a todos os pacientes infectados em ofício enviado ao MP,que tem cobrado o recrudescimento do isolamento social no estado. O governador do Rio admitiu,no documento, que a rede de saúde estadual está muito próxima ao colapso total. E acrescentou que a criação de hospitais de campanha (nove estão previstos, mas só dois foram até agora abertos) não tem sido suficiente para a demanda. Hoje, a unidade no Maracanã, com 40 leitos dos 400 previstos, será inaugurada. Witzel fez o anúncio após se reunir com o ministro da Saúde, Nelson Teich, que visitou as instalações no estádio. Os dois trataram sobre a carência de respiradores. O lockdown, também defendido ontem pela UFRJ, não foi discutido. De manhã, Teich visitou o hospital de campanha do Rio centro, gerido pela prefeitura. Lá, após conversar com o prefeito Marcelo Crivella, o ministro disse que veio para conhecer a realidade local: — Queremos enxergar a melhor forma para unir forças. Viemos para isso.