O globo, n. 31687, 09/05/2020. Especial Coronavírus, p. 8

 

Triste posição

Selma Schmidt

09/05/2020

 

 

Em pouco mais de duas semanas, Rafael de Oliveira, filho único e morador de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, viu sua vida virar de ponta-cabeça: perdeu para a Covid-19 dois tios, a avó materna e a mãe — esta enterrada terça-feira passada, aos 45 anos. Na última quinta, foi a vez de o avô materno do jovem ser internado com sintomas da doença. Na capital, a médica Flavia Verocai, que trabalha em hospitais privados, já viu nove de seus pacientes sucumbirem à pandemia. A realidade da cidade do Rio é assustadora: anteontem, o município assumiu o topo da estatística de letalidade (número de casos pelo de óbitos) por coronavírus entre todas as capitais brasileiras, superando Manaus, onde vítimas chegaram a ser enterradas em valas. O que está por trás desses números, como a possível subnotificação de casos, preocupa os especialistas. É bom observar que, na análise de casos por 100 cem mil habitantes, Manaus continua no topo, superando a média nacional de incidência da doença na população. Anteontem, registrava 240,16casosporcemmilhabitantes, enquanto a capital do Rio tinha 134,71 por cem mil. O Estado do Rio já estava à frente das outras unidades da federação, segundo estudo de dados oficiais, feito pelo Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS), formado por cientistas da PUC-RJ, da Fiocruz e do Instituto D'Or.

— A Covid-19 não escolhe endereço, idade, nem classe social — destaca a cardiologista e clínica geral Flavia Verocai, de 41 anos, que chegou a contrair a doença no fim de março, voltando a atender após 17 dias de isolamento em casa e exames que constataram sua cura. — O meu maior drama foi ficar tantos dias isolada, sem poder ver meu filho, de 7 anos.

O Rio registrou, na quintafeira, a maior taxa de letalidade por Covid desde o início da pandemia na capital (6 de março). A série histórica, acompanhada pelo aplicativo Monitora Covid-19, da Fiocruz, indicava que no 58º dia (2 maio) da pandemia, a letalidade no município era de 9,35%, muito acima do padrão internacional. Um dos fatores para explicar o número pode ser a baixa testagem de casos suspeitos, o que se reflete nas estatísticas. Com uma base maior de casos confirmados, a letalidade tenderia a cair. Na noite de anteontem, informações oficiais davamcontadequeoRiochegava a 9.051 casos e 919 óbitos, com relação subindo para 10,15%. Manaus caiu para segundo, com 9,54% (5.897 casos e 563 óbitos). Ontem, a cidade do Rio ainda permanecia na frente (10,35% de letalidade), com Manaus em seguida, com 10%. Em São Paulo, a taxa alcançou 8,01%. No estado, o alerta vermelho foi dado pelo Nois em 4 de maio. Nesse dia, ao analisar a progressão da letalidade no Brasil, os pesquisadores verificaram que o Rio apresentou a maior taxa (9,09%), seguido por São Paulo (8,25%) e pelo Sudeste em geral (7,94%). "Além disso, percebe-se que as regiões Sul (3,80%) e Centro-Oeste (2,65%) apresentaram taxas bem abaixo da média nacional, enquanto Norte (6,60%) e Nordeste (6,10%) estão próximos entre si e também da média brasileira", dizem, em documento. Especialistas como o epidemiologista Roberto Medronho, diretor do Núcleo de Saúde Coletiva da UFRJ, a pesquisadora Mônica Magalhães, do Laboratório de Informação e Saúde da Fiocruz, e o médico Leonardo Weissmann, da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), acreditam que as subnotificações e pouca testagem — na rede pública, é limitada a pacientes muito graves internados —são fatores importantes para entender esse ranking.

 EMERGÊNCIAS: SOBRECARGA

Apesar disso, Medronho alerta que o cenário no estado e na cidade do Rio é delicado: — Estamos vendo é uma sobrecarga nas emergências e nas UPAs. Os pacientes estão ficando muito tempo à espera de transferência para um leito. E já chegam ao hospital com um quadro grave e, muitos, em poucas horas, vão a óbito. A rede pública está colapsando. E não chegamos ao pico.

Para um monitoramento melhor, seria necessário também aperfeiçoar o sistema de informação. As informações sobre óbitos no Estado do Rio chegam com atraso ao Ministério da Saúde. No último boletim epidemiológico da pasta, relativo ao período entre 18 a 26 de abril, o Rio tinha a maior diferença do país entre os registros de óbitos por Covid-19 em cartórios até então (1.140) e os que entraram na estatística oficial (645). Rafael Oliveira conta que, primeiramente, perdeu o tio Ronaldo Amorim, com pouco mais de 50 anos. Depois, foi a vez do tio avô Adão Amorim. No mesmo dia, a avó materna Araceli Amorim caiu de cama, morrendo antes de chegar ao hospital municipal de Belford Roxo. A mãe, Cátia Cristina de Oliveira, já estava com sintomas. Como a saúde de Cátia piorou, Rafael passou a peregrinação. Começou por uma UPA de Belford Roxo, onde o médico diagnosticou um resfriado: —Três dias depois, voltei com ela. Ficamos lá 12 horas. Saímos às 4h da madrugada. O exame de sangue deu positivo, e nos mandaram procurar o hospital da prefeitura para fazer uma tomografia. Nele, confirmaram Covid, mas também não internaram. Quatro dias depois, fomos a um hospital particular, que mandou minha mãe para casa. No dia seguinte, ela não andava nem comida mais. Chamei o Samu, e pedi ao enfermeiro: "Salva a vida da minha mãe". Aí, a levaram para o hospital municipal, onde ficou três dias. Devido à lotação, resolveram mandá-la para uma UP, onde ela morreu na segunda-feira. As secretarias de Saúde do estado e do município reiteram que os casos e os óbitos contabilizados em um dia não refletem a realidade de 24 horas. São os números de mortes que foram incluídos na base de dados naquele dia. Ontem, o Estado do Rio já registrava 15.741 casos da doença, com 1.503 óbitos. Na capital, o número de mortos chegou a 1.002.