Correio braziliense, n. 20826 , 30/05/2020. Cidades, p.19

 

Maria Luiza tem vitória definitiva

Helen Leite

30/05/2020

 

 

Justiça reconhece que a primeira mulher trans da Força Aérea Brasileira foi vítima de discriminação. Em 2000, a militar foi aposentada compulsoriamente por ser considerada "incapaz" após iniciar o processo de redesignação sexual, apesar de possuir um currículo exemplar
Chegou ao fim a batalha judicial entre Maria Luiza da Silva, de 59 anos, e a Força Aérea Brasileira (FAB). Quase 20 anos depois de uma árdua disputa, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu que a militar sofreu discriminação ao ser aposentada compulsoriamente nos anos 2000 (leia Repercussão). Ela é a primeira transexual da FAB e, mesmo com um currículo exemplar, foi afastada das funções por ser considerada "incapaz" para o serviço militar por uma junta médica da corporação.

"É importante para mim, mas, também, para a sociedade, porque visa a questão de direitos, de não discriminação. Isso fortalece os direitos individuais de cada pessoa, a democracia e o país", comemorou Maria Luiza. A decisão, de 23 de maio, foi assinada pelo ministro Herman Benjamin.
Maria Luiza nasceu José Carlos, mas nunca se reconheceu como homem, o que lhe trouxe enormes transtornos na carreira militar. Em 2000, quando era cabo da Aeronáutica, veio o parecer do Alto Comando, que a diagnosticou como "incapaz, definitivamente, para o serviço militar", mas "não inválido, incapacitado total ou permanentemente para qualquer trabalho."

Ela conta que, desde o início, foi acuada e ameaçada por superiores. "Eu era pressionada a desistir do processo de mudança de sexo, me impediram de usar o fardamento. Falar sobre isso, ainda hoje, é sensível para mim", diz.

Mesmo com a vitória na Justiça, a cabo chora ao lembrar dos últimos 20 anos. De lá para cá, a militar tentou diversas vezes retornar à atividade que exercia, a de mecânica de aeronaves. "No começo, eu tinha muita esperança de que eles entendessem meu amor pela profissão e meu desejo de continuar trabalhando, mas não me deixaram", conta. 

Batalha
Ao longo dos 20 anos, a União recorreu nos processos envolvendo Maria Luiza, ao menos, 10 vezes. Ela venceu todas, nas duas instâncias. Em 2010, o juiz Hamilton de Sá Dantas, da 21ª Vara Federal, mandou a Aeronáutica reintegrar Maria Luiza. Mesmo que na reserva, com saldo igual ao dos militares nunca reformados. A cabo, porém, não voltou à ativa devido à idade: ela tinha completado 49 anos. O tempo de serviço de 30 anos, padrão adotados nas Forças Armadas, havia transcorrido.

Sentada em frente a uma parede repleta de diplomas e medalhas de honra ao mérito por bons trabalhos prestados ao país, ela diz que, apesar de tudo, ainda sente orgulho da profissão. "Pra mim, a atividade militar era o meu sonho, sempre me deu muita felicidade. Ainda hoje, eu vou lá visitar e relembrar, era, e ainda é, um trabalho que eu admiro demais", finaliza.

No acórdão, o ministro Herman Benjamin destacou a ilegalidade da ação da FAB e confirmou o direito de Maria Luiza de permanecer no imóvel funcional que ocupa, no Cruzeiro Novo, até que seja implantada a aposentadoria integral referente ao último posto da carreira militar. Ou seja, embora ela tenha sido afastada do serviço como cabo, deve se aposentar como subtenente, já que "lhe foi tirada a oportunidade de progredir na carreira".

O advogado de Maria Luiza, Luiz Max Telesca, destaca que a decisão final sobre o caso chega em boa hora. "Esse processo significa a afirmação definitiva de que o gênero não pode ser discriminatório. É muito salutar que o direito brasileiro continue confirmando direitos humanos e direitos à diversidade sexual", comemora.