Valor econômico, v.21, n.5017, 08/06/2020. Brasil, p. A2

 

Cúpula da saúde pressiona até Abin a maquiar dados

Fabio Murakawa

08/06/2020

 

 

Militares que ocupam postos chave no Ministério da Saúde vêm pressionando técnicos da pasta a maquiar dados relativos a casos de covid-19 e mortos pela doença no país. A pressão atinge também a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), que produz relatórios usados para consumo interno do Centro de Coordenação de Operações (CCOP) da Casa Civil - grupo que atua no Palácio do Planalto e reúne funcionários de vários ministérios.

Essa maquiagem começou a tomar forma na sexta-feira, quando os dados, divulgados em horário cada vez mais tardio, também sofreram mudanças na apresentação das cifras diárias de casos e óbitos.

O horário da divulgação, às 21h30, após o fim do "Jornal Nacional", foi uma ordem do presidente Jair Bolsonaro, disseram fontes ao Valor.

A maquiagem deve sofrer mais retoques nesta semana, caso seja adotado um novo critério para exibição do número diário de mortes, sugerido por auxiliares do ministro Eduardo Pazuello - e que deve resultar em um número bem menor do que os atuais.

O novo método, dizem técnicos ouvidos pelo Valor sob condição de anonimato, tem como referência a sugestão feita pelo empresário Luciano Hang, investigado pela Polícia Federal no inquérito das Fake News, em um vídeo encaminhado a eles pela cúpula da Saúde em um grupo de WhatsApp.

Hoje, os números exibidos contêm as mortes registradas no mesmo dia e os óbitos confirmados naquela data, mas que ocorreram anteriormente e estavam sob investigação. Funcionários relatam que o coronel Elcio Franco Filho, secretário-executivo da pasta, tem insistido para que passem a ser divulgadas apenas as mortes ocorridas e confirmadas no mesmo dia.

Um exemplo de como essa ordem ajuda a maquiar os dados: em 4 de junho, a pasta divulgou o número recorde 1.473 mortes. Esse dado se refere à soma das mortes ocorridas naquela quinta-feira e aos óbitos por covid-19 confirmados naquele mesmo dia, mas que estavam sob investigação.

O mesmo boletim trazia o número de mortes com data de ocorrência nos últimos três dias era de 366 - o restante era relativo a casos que estavam em investigação. É esse número que se pretende adotar daqui para a frente.

Na última sexta, o Ministério da Saúde passou a publicar somente os registros de óbitos e casos confirmados a cada dia, sem o dado acumulado. A mudança gerou críticas de autoridades como o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), entidades médicas e acadêmicos, que apontaram falta de transparência.

Para técnicos, as mudanças deixam os gestores da área sem capacidade de interpretar os dados ao longo do tempo e sem referência da curva da epidemia no país. Somada isso, a omissão dos dados acumulados impede o país de ter uma ideia precisa de quantas pessoas morreram pelo coronavírus.

"A epidemiologia básica é justamente olhar todos esses dados em conjunto. As apresentações preparadas para o público continham todos esses dados", diz um servidor sob a condição de anonimato.

O coronel Franco e seu adjunto, Jorge Kormann, vêm nos últimos dias bombardeando os técnicos da pasta no grupo de WhatsApp com mensagens, insistindo na conveniência da mudança do método de contagem.

O Valor teve acesso a algumas mensagens cuja falta de rigor científico choca os técnicos da pasta da Saúde. Em uma delas, Kormann encaminhou vídeo publicado pelo empresário Luciano Hang. "O vídeo acima é para refletirmos sobre o mapeamento de óbitos diários", disse Kormann ao introduzir o material aos colegas.

No vídeo, Hang promete fazer uma live com o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS) para "mostrar o que está por trás dos números" recorde de mortes pela covid-19. Hang exibe, então, uma gráfico com dados de cartórios mostrando uma curva de óbito sem trajetória descendente. Assim, defende que o governo passe a publicar apenas as mortes confirmadas no mesmo dia. Segundo funcionários da Saúde, no entanto, a curva mostrada por Hang é descendente "porque os dados de mortes recentes são muito preliminares".

Outro pedido de Elcio Franco no grupo foi para que a Abin "verifique a possibilidade de não trabalhar com dados acumulados". Os números da Abin são usados para consumo interno, explicam as fontes, inclusive para que o próprio presidente tome decisões a respeito da pandemia. Ou seja, sem essas informações, Bolsonaro adotará políticas sem nenhum embasamento em dados científicos.

Além disso, um boletim epidemiológico semanal elaborado pelos técnicos foi "censurado" pela cúpula do ministério. O material mostra em 95 páginas informações da doença e a tendência por Estado. Mas, como contém dados cumulativos, o material que seria divulgado na semana que vem foi embargado pelo coronel.

O Gabinete de Segurança Institucional (GSI), responsável pela Abin, não se pronunciou. Já o Ministério da Saúde disse em nota que "os debates ocorridos ao longo da semana tiveram o objetivo de qualificar a disponibilidade das informações e retratar de forma mais adequada os diversos cenários em território nacional".

Em nota à imprensa, após a consulta do Valor, a pasta disse que "o uso da data de ocorrência (e não da data de registro) auxiliará a se ter um panorama mais realista do que ocorre em nível nacional e favorecerá a predição, criando condições para a adoção de medidas mais adequadas para o enfrentamento da COVID-19, nos âmbitos regional e nacional".

A polêmica sobre a divulgação das mortes pela covid-19 é forte dentro do governo e ontem derrubou um secretário antes mesmo de ele tomar posse. O empresário Carlos Wizard Martins desistiu de assumir a Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos da Saúde e anunciou que deixou de ser conselheiro do ministério após haver sugerido uma recontagem dos mortos no Brasil. Em nota, ele se desculpou pela declaração.

"Peço desculpas por qualquer ato ou declaração de minha autoria que tenha sido interpretada como desrespeito aos familiares das vítimas da covid-19 ou profissionais de saúde que assumiram a nobre missão de salvar vidas", disse.

Ontem, a pasta confirmou o registro de 1.382 óbitos pelo coronavírus em 24 horas. O total de mortos  chegou a 37.312 pessoas. E o de pessoas já infectadas, a 685.427.

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Cresce desconfiança sobre governo Bolsonaro no exterior

Assis Moreira

08/06/2020

 

 

A atitude do governo brasileiro de alterar a política de divulgação dos dados sobre a covid-19 ampliar a desconfiança internacional em relação ao presidente Jair Bolsonaro, em meio ao crescimento do número de mortos no país.

Oficialmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) informou ontem que "não tem comentários sobre a questão". Mas não será surpresa se o diretor-geral da entidade, Tedros Adhanom Ghebreyesus, observar nesta segunda-feira, na entrevista coletiva tradicional sobre a pandemia, que qualquer estratégia contra a covid-19 tem que ser baseada em estudos científicos e que, para isso, é preciso ter dados precisos.

A OMS trabalha com os dados fornecidos pelos países e necessita ter certeza de que eles são fornecidos corretamente, diz uma fonte. O regulamento sanitário internacional da OMS requer que um país membro forneça informações no prazo de 24 horas sobre casos como o da covid-19. No caso do Brasil, as informações são enviadas via OPAS, braço da OMS nas Américas.

A argumentação do governo brasileiro sobre uma eventual manipulação do número de mortos por governadores é considerada "ridícula", porque o sistema de notificação de óbitos do Brasil é considerado muito bom.

A postura de Bolsonaro atropela o que os EUA - e por tabela, o Brasil - têm cobrado da OMS no caso da China: transparência. Na verdade, a China chegou a revisar dados sobre o número de mortes. Mas o resultado foi um aumento de 50% no total de vítimas em Wuhan, a cidade chinesa central no epicentro da pandemia global, em um determinado período. Segundo Pequim, a revisão foi por causa da capacidade insuficiente de admissão e tratamento no pico do problema.

Na imprensa internacional, as manchetes sobre o tema variam da BBC de Londres, que realça que o Brasil removeu os dados do covid quando o número de mortos é crescente, até a televisão suíça, que informa que o Brasil tornou os dados "invisíveis". E a France24h, televisão internacional francesa, diz que o Brasil está escondendo os dados.